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Escravos hipermodernos

Não. Não me refiro aos inúmeros casos hodiernos de pessoas encontradas no trabalho...

Savio Gonçalves dos Santos
Publicado em 28/07/2017 às 20:04Atualizado em 16/12/2022 às 11:39
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Não. Não me refiro aos inúmeros casos hodiernos de pessoas encontradas no trabalho – aqui com a devida vênia ao termo latino tripalium – em situação análoga à escravidão. Refiro-me a você, a ele, a nós; todos nós que nos encontramos na modernidade, pós-modernidade ou, como prefiro, hipermodernidade. Explico. Hipermodernidade é um neologismo cunhado pelo professor e filósofo francês Gilles Lipovetsky (1944), no qual faz referência ao período histórico, social e pessoal em que estamos inseridos. Entre as principais características dessa Hipermodernidade, estã uma sociedade liberal, fluida, móvel, mutável, flexível, indiferente; marcada pelo indivíduo pleno do “pânico narcísico” de Freud. Um comportamento individualista, agindo através de um verdadeiro self-service normativo, como demarca Pierre Legendre (1930), numa privatização da ética, acrescenta Edgar Morin (1921).

Somos, incluo-me, seres da Hipermodernidade, da liquefação baumaniana – em referência à “Modernidade Líquida” de Zygmunt Bauman (1925-2017). Fazemos parte desse todo complexo que coloca Kant num “saco de pancadas” e vocifera Nietzsche num arroubo intelectual rasteiro. Apontamos Foucault para justificar nossas ações, e julgamos com Hobbes e seu “Leviatã”; afinal, o homem é mal por natureza – observaçã Hobbes nunca afirmou isso. Vivemos a era do agora, nunca do ontem ou do amanhã. Já não valorizamos mais nada... ora, valores são imposições violentas colocadas pela classe dominante. As normas são conformistas. Mantém o sistema. Constrange o indivíduo. Obrigam a fazer coisas que não se quer. Elas precisam ser superadas em nome da individualidade, da liberdade, do sonho do eu posso, eu quero e eu faço – Direito à la carte. Não há mais espaço para o eu devo.

Quando se analisa as sociedades animais não-humanas e as compara com as sociedades humanas, o que se observa, para além da capacidade intelectual altamente desenvolvida, ou o polegar opositor – vide o documentário “Ilha das Flores” – é a existência de outras características singulares, como o não automatismo e a capacidade da geração da cultura. Cultura essa que impossibilita que voltemos ao caos – o filosófico – e garante a sobrevida. São os valores, frutos da cultura, que nos permitem erigir a comunidade, a sociedade, a assumir compromissos e a projetar. Ao se retirar esse “equipamento de segurança” do humano, ou a se atacar sistematicamente o sistema de ordem – a filosófica –, alterando o funcionamento do sistema, o que sobra é a superfluidade. Tudo que não me convém não é bom, justo ou verdadeiro. Assim, nada mais tem valor. Somos, agora, humanos despudorados, lançados ao relento da existência simbólica, banal. Abre-se espaço para a delinquência, para o cinismo, para a violência. Desvaloriza-se a Política em busca dos interesses pessoais. Ela se torna o espaço para o crime que sufoca o diálogo, oprime a liberdade, recruta a insolência.

Ao cidadão comum, limitado pelas condições sociais – não se desconsiderando o seu vazio existencial –, cabe a vida num mundo ilusório. Criamos mecanismos cegos de sobrevivência. Estabelecemos um espaço mínimo de segurança: a casa. Munimos nosso espaço de artefatos de consumo cada vez mais sofisticados, escolhemos cada vez mais afazeres domésticos – inclusive trabalho – e esvaziamos qualquer possibilidade de saída coletiva. Finda-se a liberdade, a coletividade, o diálogo. Solução? Só uma: resgatar os “bons tempos” do autoritarismo. Afinal, o que fazia do escravo um escravo?

(*) Filósofo e professor universitário

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