ARTICULISTAS

O adeus aos vivos

Brasília chovia a cântaros, uma chuva com a qual eu aprendera a conviver nos meus tempos de UnB

Aurélio Wander Chaves Bastos
Publicado em 17/03/2011 às 00:18Atualizado em 20/12/2022 às 01:09
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Brasília chovia a cântaros, uma chuva com a qual eu aprendera a conviver nos meus tempos de UnB; ela vai logo embora, mas tudo fica verde como os verdes anos de nossas vidas. Dilma Roussef e Michel Temer entravam pela Chapelaria do Congresso, vencidos os ventos molhados da Esplanada, quando pude verificar a dimensão convexa dos nossos olhares que se cruzavam e que a História do Brasil tantas vezes permitiu que compartilhássemos a mesma weltanschauung, visões do mundo que o tempo separou. Tomado pela emoção de suas próprias emoções, senti não propriamente à recherche du temps perdus, mas a dor da distância marcada naquele instante como reencontro de esperanças. Vivi a sensação de quem está longe do poder, mas ao mesmo tempo tão perto do poder ou, quem sabe, tão perto e tão longe de mim mesmo.

Como evitar que escorregassem as lágrimas de minhas lembranças dos tempos de vivência com a Dilma, colaborando com nossos cursos sobre modernas tendências do Socialismo no Brasil, na biblioteca interna da clausura da Igreja São Domingos em Uberaba, junto com muitos dos companheiros que estariam mortos pela repressão daqueles mesmos tempos. Daquela mesma Igreja de pedras sobre pedras vimos partir para sempre o João Maurício, o Frei Inocêncio, para as águas do Araguaia; o Eduardinho, para os ninhos de metralhadora; o Ângelo Pezzutti (meu amigo de menino no Colégio Dom Bosco em Araxá e, como Dilma, companheiro na Polop, o celeiro da esquerda alternativa), que morreu enquanto médico na obscura névoa da Paris de inverno, na traseira de um caminhão; ou o Frei Ivo (de tanta coragem), nos trilhos do trem de ferro da angústia solitária da mesma Paris, perseguido pelo seu algoz, que, ao dominar satanicamente a sua alma, subtraiu-lhe as forças para sobreviver.

Como esquecer Stella despedindo-se de Stella Chaves, minha mãe, aquela inocente amizade que meu irmão Eduardo, morto, ajudou a frutificar, ou aquela Stella que agora voltava para dar os cursos no salão paroquial daquela mesma Igreja São Domingos, gruta dos nossos amores, que faziam da sua convicção efusiva o prenúncio da Igualdade e da Liberdade. Tudo isso estaria fora do tempo e não teria me invadido de emoções se não tivesse sentido a presença, ao lado da Presidente, do nosso companheiro comum Carlos Alberto Freitas (o Beto), sumido na escuridão da maldade, deixando na firmeza do seu olhar a frase tantas vezes repetida: “O nosso caminho é o Socialismo revolucionário” – sonho sonhado. Esta convicção profunda não impediu que ficasse entre seus companheiros a réstia de sua bela, lúcida e corajosa inteligência, que me permitiu conviver ainda com Apolo Heringer – hoje médico e abençoado companheiro de vida do povo ribeirinho do Rio São Francisco –, juntamente com José Prates, agora em Salinas de Minas, quando abrimos, em desafio ao governo autoritário no Congresso Nacional, que promulgava a Constituição de 1967 (emendada em 1969 após o Ato Institucional nº. 5/68), a Bandeira do Brasil. Ela simbolizava a nossa coragem de enfrentar as canhoneiras e os porões, que até então desconhecíamos; aqueles que Dilma desconstruiu.

A História própria reverte as suas maldades e o Congresso Nacional dos novos tempos, nesta data de hoje (1º de janeiro de 2011), sobre o fundo verde, amarelo e azul da Bandeira Nacional, empossa Dilma e Michel Temer, que também o presidiu, abrindo os caminhos do reencontro. Vendo Michel, coloquei-me no caminho da recuperação do destino, no adeus às curvas do passado, nas tantas bancas de tese de Mestrado e Doutorado em Direito em que estivemos juntos na Universidade, onde repensávamos a vida. Para ele, na sua firme convicção, a Democracia era o novo nome da Revolução e Direitos Humanos era o novo nome do Socialismo; distâncias à parte, novos caminhos comuns desta bandeira que a história desenhou como bandeiras de Dilma Rousseff.

Não convivi com Michel a tragédia dos anos da juventude, mas sim os encontros das novas convicções para viabilizar a Democracia e os Direitos Humanos. Nossos amigos não morreram juntos, mas agora vivem juntos, na mesma democracia que Dilma e Michel sonharam comumente. Eu pude, com todos que estiveram comigo, sonhar junto com eles. A história me deu este grande presente e é este o presente que ofereço aos colegas que militam(aram) comigo na vida universitária, na vida profissional e nos belos anos de Uberaba que se perderam nos trágicos anos de Brasília. Neste primeiro de janeiro deste ano de 2011, estamos iniciando um ciclo em que a História do Brasil deixa de ser a história das derrotas populares, como dizia o acadêmico e historiador José Honório Rodrigues, para ser a história das esperanças dos temps perdus. Dilma, como mulher, é o símbolo desta esperança; a esperança de todas as filhas e filhos e, como combatente pela Democracia e pelos Direitos Humanos, a esperança dos tantos brasileiros companheiros na História.

Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 2011.

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