ARTICULISTAS

A Tragédia de Paris

Esta história começou numa tarde de segunda-feira, 15 de abril

Olga Maria Frange de Oliveira
Publicado em 26/04/2019 às 19:54Atualizado em 17/12/2022 às 20:14
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Esta história começou numa tarde de segunda-feira, 15 de abril, quando eu estava na casa de Shirlene, minha manicure e amiga. Por volta das 4 horas da tarde tocou o telefone ao meu lado. Era meu marido, consternado, comunicando-nos o infausto acontecimento de um incêndio de grandes proporções na Catedral de Notre-Dame de Paris. Imediatamente ligamos a televisão, e as imagens que vimos eram estarrecedoras, inimagináveis. A partir daí, todos os noticiários do dia e da semana só falaram da catástrofe. Parecia que não só Paris, mas o mundo ocidental, se unia na dor dessa tragédia. 

A Notre-Dame, em tradução literal “Catedral de Nossa Senhora de Paris”, é uma das mais antigas catedrais francesas em estilo gótico. Na arquitetura, esse estilo apareceu na França em fins do século XII e expandiu-se rapidamente pela Europa ocidental. Situada na Île de la Cité, em Paris, a catedral foi erguida em sítio privilegiado, abraçada literalmente pelo rio Sena. Sua construção teve início em 1163 e foi concluída 182 anos depois, em 1345. Uma das particularidades do estilo gótico é o fato de ter nascido com as cidades. As catedrais tornaram-se o coração das cidades, e era dentro delas ou no adro do edifício religioso que se realizavam as atividades mais relevantes da comunidade. Era procedimento comum na época que cada segmento da população, através das corporações, contribuísse para a sua edificação. Dessa forma, colaboravam na construção da igreja doando vitrais e financiando capelas ou altares laterais dedicados aos santos patronos das diferentes categorias de trabalhadores.

A cidade de Paris escolheu a catedral como seu principal monumento. O arrojo vertical da igreja é caracterizado pelo seu aspecto monumental, com paredes altíssimas que conduzem a vista para o alto, em direção às abóbadas, colocadas a mais de 30 metros de altura. Nenhum outro estilo exprimiu a exaltação mística com tanta precisão. As proporções eram fora dos padrões até então utilizados, exigindo contrafortes em todo o seu entorno para sustentar o peso esmagador dessas abóbadas.

Artífices anônimos assim a fizeram para que ela imperasse pela força de sua grandeza. Estátuas, relevos, vitrais e uma infinidade de gárgulas criam uma atmosfera mágica, acentuada pela penumbra de seu interior que nos remete a uma introspecção e nos aproxima do divino.

Anos atrás quando estive na catedral, percebi que nada pode ser comparado à majestade religiosa desse edifício consagrado aos rituais da fé cristã. Tudo, dentro e fora do templo, foi projetado para sensibilizar o mais profundo da alma humana. A cultura, acumulada ao longo dos séculos, fez da Catedral de Notre-Dame de Paris uma depositária da “memória do mundo”. A sensação que eu tive quando vi o incêndio era de que estávamos diante da imagem de um passado agonizante. Senti a dor aguda de estar presenciando os últimos suspiros de um mundo que se vai.

Os dramas diários confundem-se com a nossa própria vida, e o que é pior, nos obriga a ser espectadores de tragédias que não podemos remediar, mas cujos horrores temos de contemplar em detalhes. A menos que desliguemos a televisão, como o avestruz se recolhe às penas, assistimos impassíveis ao incêndio, com suas labaredas destruindo tudo em sua voragem arrasadora.

Então refleti que as igrejas, como as casas, nascem, vivem, adoecem e morrem, como as pessoas. Somente algumas têm o privilégio de durar séculos, mas acabam morrendo também.

Cada um de nós amanheceu mais pobre após a madrugada de terror. O episódio desnudou, uma vez mais, a fragilidade de nossas obras diante da incapacidade de preservá-las dos desacertos próprios da raça humana.

Não interessa saber de quem foi a culpa do incêndio, se foi por descuido ou inabilidade, se houve dolo ou não. São informações que se mantêm à margem de uma trágica realidade, incapazes de reverterem os danos irreparáveis. Mesmo após a restauração as sequelas serão profundas. Essas informações apenas irão se somar aos dados históricos, junto a tantos outros, na longa cadeia de acontecimentos que pontuam sua longevidade. A imagem da catedral em chamas ficará para sempre gravada em nossas retinas pelo forte impacto que nos causou.

Fecho os olhos e visualizo a fachada imponente da catedral, com sua bela rosácea e, do lado de fora, a humanidade, ombro a ombro, buscando adentrar a porta estreita que nos levaria ao regaço de Nossa Senhora, mãe de todos os homens. Que Deus tenha piedade de nós! 

(*) Pianista, professora, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba e ex-diretora-geral da Fundação Cultural de Uberaba

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