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Elogio da mentira

A uma pergunta da mãe, vi e ouvi meu sobrinho de apenas três anos responder mentindo

Padre Prata
Publicado em 29/09/2018 às 11:06Atualizado em 17/12/2022 às 13:57
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A uma pergunta da mãe, vi e ouvi meu sobrinho de apenas três anos responder mentindo. Fiquei surpreso ao concluir, naquele momento, que a mentira está inerente na natureza humana. Nascemos todos com a predisposição invencível para a mentira. Se não me engano foi Goethe que disse ter sido nos dada por Deus a palavra para que pudéssemos ocultar nossos pensamentos. Já Anatole France dizia que “sem a mentira, a humanidade morreria de desespero e tédio”. Voltaire, o cínico, apregoou a mentira como arma de destruiçã “Mentez, mentez, quelque chose restera toujours” (Menti, menti, alguma coisa ficará para sempre). Um dito lamentável

Já faz tempo, um amigo meu foi detido por crime de contrabando. Em má hora fui escolhido por ele para testemunhar em seu favor. Como nunca tinha comparecido diante de um juiz, não sabia como eram as coisas. Muitas perguntas me foram feitas. Uma delas: “O senhor sabe que o réu aqui presente pratica o contrabando que é uma atividade proibida pela lei?”. Durante alguns segundos, fiquei paralisado. Se eu falasse a verdade, eu botaria meu amigo na cadeia. Respondi: “Não, senhor, nunca ouvi falar dessa atividade dele”. Olhei para a parede logo acima da cabeça do Juiz. Lá estava a imagem do Crucifixo. Parece que o Cristo dizia para mim: “Bonito, hein?”. “O Senhor me perdoe, mas ele é pai de família, essa mentirinha minha foi uma caridade, o Senhor entende melhor do que eu.”

Pensando bem, nem toda mentira pode ser considerada um pecado, desde que não prejudique a ninguém. Todo mundo mente. Todos, incluindo os médicos, os padres, os juízes, os advogados, os negociantes, os pais, todo o mundo mente. Mentir faz parte da condição humana. O que é a cortesia senão uma deslavada mentira? “Gostou de meu vestido?” Você nunca vai dizer que está horrível. “Gostou de meu café?” A única coisa que faltava naquela beberagem era água, mas responde que “está ótimo”. E assim vamos tocando a vida, de mentira em mentira, ficamos bem com todos. Se alguém abusa da sinceridade, falando coisas negativas a nosso respeito, ficamos tristes. Dizer sempre a verdade nos torna duros, insensíveis, mal-educados. A franqueza ofende. Acho abominável ouvir alguém dizer “eu sou franco”. Todo aquele que se diz franco é grosseiro e malcriado.

Sem dúvida, os políticos são aqueles que mais mentem. Sabemos que mentem e, mesmo assim, votamos neles. Suas mentiras são deslavadas, não cumprem nada do que prometem, dão rasteira em sapo e nó em goteira. Mesmo assim votamos neles. A mentira anda de braços dados com a ingenuidade.

A publicidade é mentirosa. Se não mentissem, não venderiam. Vender é uma arte, a arte de mentir. “Estas pílulas trazem todas as vitaminas, de A a Z e todos os minerais.” Sabemos que é mentira e compramos. Coca light, guaraná light, sal light, ovos light, tudo é light. Noutras palavras, tudo é mentira. Mesmo assim compramos felizes da vida.

Às vezes temos a impressão de que a mentira é necessária. Se não mentíssemos, não haveria paz entre as nações, entre os grupos, nas famílias, na sociedade. A Bíblia narra fatos em que a mentira foi fundamental. Abraão, o pai dos crentes, e Sarah, sua esposa, mentiram muito. Rebeca, esposa de Jacó, também usou da mentira em proveito próprio. Até Pedro, o grande apóstolo, mentiu descaradamente afirmando que não conhecia Jesus.

Ocultar a verdade é, muitas vezes, um dever, um modo de evitar desgraças. Por ser contra a mentira, Kant tornou-se um filósofo antipático. Veja o que ele escreveu: “Não se pode mentir sob nenhuma condição, nem mesmo para salvar a vida de um inocente”. Kant era um psicopata. Certamente.

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