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Obras-Primas do Cinema Europeu

Carl Theodor Dreyer (Dinamarca, 1889-1968), em pelo menos três de seus filmes

Guido Bilharinho
Publicado em 26/09/2018 às 19:12Atualizado em 17/12/2022 às 13:53
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Dias de Ira

A Unicidade Artística 

Carl Theodor Dreyer (Dinamarca, 1889-1968), em pelo menos três de seus filmes - Páginas do Livro de Satã (Blade of Satans Bog, Dinamarca, 1919), A Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, França, 1928) e Dias de Ira (Vredens Dag, Dinamarca, 1943) - focaliza os soit- disant “julgamentos” inquisitoriais levados a efeito ora pela Igreja de Roma, ora pelos protestantes.

Em Dias de Ira centra a trama em duas situações básicas, sem prejuízo de outras menores ou residuais: o amor da jovem esposa de líder religioso pelo próprio filho deste e a perseguição, pretenso julgamento, condenação e imolação de supostas “bruxas”.

Na realidade, como em toda grande obra de arte, o filme é muito mais do que isso, transcendendo os limites estreitos dos fatos para inserir-se nas coordenadas do destino humano, do que esse ser fez e faz de sua vida. De como a organiza de tal maneira, que o essencial e o natural jazem soterrados sob montanhas de erros, preconceitos, interesses, ideias feitas, certezas absolutas, crueldades, hipocrisias, mentiras, exploração e conveniências, enfim, sob todo um complexo mental e comportamental autolimitador e impositivamente cerceador do semelhante.

Dentre seus atributos, destacam-se densidade e consistência humana dos relacionamentos e conflitos e sofisticação formal na organização e enquadramento de décors claro-escuros inspirados na pintura colorida de Rembrandt, conforme notado pela crítica, a ponto de uma cena dos inquisidores reportar de imediato ao célebre quadro do pintor flamengo, Lição de Anatomia.

O posicionamento, postura e atitudes de cada personagem alicerçam-se em sólida construção humana, que se reflete no modo e, principalmente, nas consequências de suas relações.

Desde pelo menos seu citado filme de 1919, a crítica nota a precisão do talhe psicológico de suas personagens, que, em Dias de Ira, revelam-se plenamente nos semblantes. Seus perfis tipológicos salientam-se e fixam-se tão instantaneamente, que nem seria necessária a prova dos atos para defini-los e mostrá-los. Mas, estes, quando concretizados, confirmam a impressão transmitida.

Os quadros - porque o são - em que se movimentam e agem as personagens compõem sucessão pictórica envolvente e tão soturna como os dramas que se armam em seu interior.

Mais (muito mais) do que simplesmente articular e narrar estória de amor desenrolando-se paralelamente ao horror da ordem estabelecida e do qual só escapam seus fautores e beneficiários diretos, Dias de Ira desnuda a condição humana tal qual se apresenta em determinada etapa histórica e lugar geográfico.

Consta que por suas alusões nesse filme à dominação nazista de seu país na ocasião teve de fugir para a Suécia, só retornando após o fim da guerra.

Não se percebem nos diálogos tais referências, que, se neles há, devem ter ficado perdidas nos meandros de falas não totalmente traduzidas na versão em vídeo.

Contudo, se se for estender tal afirmativa até onde se pode fazê-lo, não é difícil estabelecer paralelo entre a situação da jovem esposa do líder religioso e a Dinamarca, ambas dominadas, cerceadas e vigiadas e que, quando tentam libertar-se, mais se complicam, dado o poderio do establishment impiedoso e desumano.

Aliás, interpretação que encontra respaldo no drama sartreano As Moscas (Les Mouches), estreado em Paris justamente no ano de realização do filme, 1943, e atinente à ocupação nazista da cidade.

Ambos projetam em passado distante as vicissitudes do presente.

Contudo, isso é o de menos, já que conjuntural e episódico. A questão fundamental é que o filme de Dreyer extrapola suas possíveis vinculações ocasionais e até e principalmente o arcabouço de seu entrecho para se projetar como criação artística de determinadas manifestações da precária condição humana, com perspicácia, profundidade e eficiência. E tanto e de tal modo, que da atmosfera adensada, limitada e sufocante que constrói com extremada inteligência, ressalta-se, a par do drama (do eterno drama) humano, a requintada construção estética.

Autenticidade dramática, opressiva atmosfera física e social e beleza artística da composição do conteúdo da imagem (que é a própria imagem), articulam-se em simbiose perfeita, formando uma só e mesma obra de arte. 

(*) Advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, história do Brasil e regional

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