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Saúde versus economia

José Elias de Rezende Júnior
Publicado em 04/06/2020 às 06:48Atualizado em 18/12/2022 às 06:50
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Em tempos de coronavírus, um homem dirige seu confortável carro pelas ruas esvaziadas de uma cidade do Brasil, quando depara, num semáforo, com um jovem robusto e de aparência saudável que pede esmolas aos ocupantes dos poucos carros parados no local. O rapaz não chega até o carro do homem, o que causa certo alívio neste, posto que a miséria do jovem torna, de certa forma, a sua abundância um tanto quanto incômoda, até mesmo porque, pela aparência do garoto, não se trata de um mendigo profissional.

Viajando pelo espaço e pelo tempo, convido o leitor a seguir agora para a Prússia de 1862 (KARDEC, Allan. Revista Espírita 1862), onde uma pobre viúva, mãe de três filhos, entra numa padaria e pede insistentemente ao padeiro que lhe venda um pão fiado ou que lhe conceda uma libra de pão para os filhos famintos, o que é recusado pelo padeiro, que se dirige ao fundo do estabelecimento, momento em que a mulher subtrai o pão e se retira. Descoberto o furto e informado à polícia, um agente chega à casa da viúva no exato momento em que esta cortava o pão para os filhos. Embora constrangido pela dureza do padeiro, o agente informa que a senhora deveria acompanhá-lo até o comissário, o que a levou a cometer suicídio com a faca com a qual cortava o pão.

Acerca deste último fato, o Espírito de Lamennais, invocado em sessão na Sociedade Espírita de Paris, afirmou que “Deus julga as almas, mas também julga os tempos e as circunstâncias; julga as coisas forçadas e o desespero; julga o fundo e não a forma (....) Essa infeliz matou-se não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha”. E acrescenta que o homem deveria ser capaz de desenvolver o dom de descobrir as coisas ocultas e enxergar que, nesta situação, a mulher é abençoada por Deus e o homem que negou o pão é amaldiçoado.

Pois bem, retornando ao ano de 2020 e ao fato mencionado inicialmente, agora sob a luz do tal dom proposto por Lamennais, percebe-se que nem sempre há uma relação direta entre a abundância material e a felicidade. De modo que não há como afirmar taxativamente, sob tal ótica, que o homem em seu carro é mais feliz que o jovem alçado à categoria de mendigo.

E, nesta mesma linha de raciocínio, a atual dicotomia saúde versus economia, a pobreza do debate que tem os interesses pessoais como foco e o destempero verbal dos debatedores dão a noção da indigência moral na qual se afundaram os homens, incapazes de perceber que a Covid-19 não veio trazer a falência do sistema de saúde ou da economia, mas mostrar à humanidade, concretamente, que “nem só de pão o homem viverá”.

Quanto aos personagens das duas histórias, ambas verídicas, diga-se de passagem, o homem em seu carro pode estar na mesma categoria do padeiro do século XIX, caso não perceba que a sua abundância representa, antes de prosperidade e benefício pessoal, compromisso com o próximo.

José Elias de Rezende Júnior

Advogado e professor universitário

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