POLÍTICA

Sentimento de posse gera violência contra a mulher, diz gerente do CIM

Formada em Direito e pós-graduanda em Violência Doméstica, Juciara Limírio está há cinco anos à frente desse trabalho

Thassiana Macedo
Publicado em 22/07/2018 às 11:14Atualizado em 17/12/2022 às 11:43
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Jairo Chagas

Juciara Moura Limírio, gerente do Centro Integrado da Mulher (CIM), diz ser preciso desconstruir a cultura machista existente na sociedade

Pesquisadores dizem que o não-reconhecimento da gravidade da violência contra as mulheres e de suas raízes discriminatórias concorre não só para que as agressões aconteçam, mas também auxilia a manter a situação de violência até o extremo do assassinato. Até junho de 2018, sete mulheres foram assassinadas em Uberaba por ex-“companheiros”, insatisfeitos com o relacionamento ou com o seu fim. O índice quase empata com o número de mulheres que perderam a vida nos anos de 2016 e 2017 juntos, quando maridos ou amásios mataram quatro mulheres em cada ano. Dentro desse cenário assustador, sabe-se que, nos dois primeiros meses deste ano, cinco mulheres foram brutalmente assassinadas, superando os crimes registrados em 12 meses de 2017. Infelizmente, há quem acredite que em nem um desses casos houve o menosprezo ou discriminação à condição da mulher para configuração do feminicídio, crime previsto no artigo 121 do Código Penal. Porém, há uma dificuldade por parte da polícia e do próprio Judiciário em caracterizar o crime de feminicídio. Para falar sobre o assunto, o Jornal da Manhã entrevista a gerente do Centro Integrado da Mulher (CIM), Juciara Moura Limírio. Formada em Direito e pós-graduanda em Violência Doméstica, ela está há cinco anos à frente desse trabalho. 

Jornal da Manhã - Sete mulheres já foram brutalmente assassinadas pelos ex-“companheiros” em 2018. A que a senhora atribui esse número tão alto e maior do que o registrado nos dois anos anteriores?

Juciara Moura Limírio - O Centro Integrado da Mulher acolhe todas as mulheres vítimas de violência e é a porta de entrada para a Delegacia da Mulher, e o que nós observamos aqui, no centro de referência, é que há muita situação de posse dos companheiros e dos maridos em relação às mulheres. Eles não aceitam o término do relacionamento ou que as mulheres cresçam profissionalmente. Então, eles começam a querer impor determinados limites às mulheres, mas estamos em pleno século 21 e sabemos que não existem mais esses limites. Cada dia as mulheres estão mais empoderadas e saem do espaço doméstico para batalhar lá fora, o que, para a cabeça fechada de muitos homens, atrapalha o relacionamento. Percebemos nos relatos dessas vítimas, que chegam aqui ao CIM no início dos problemas familiares em relação à violência, é que há sempre muito ciúme. E o que falo é que precisamos desconstruir esses relacionamentos com sentimento de posse que muitos homens ainda acham que têm sobre as mulheres.

JM - Houve aumento do número de mulheres vítimas de violência doméstica atendidas pelo CIM? É reflexo do aumento da violência ou as mulheres têm tido mais coragem de denunciar?

Juciara Moura - Passaram a ter mais coragem de denunciar. Em geral, o número de casos de violência atendidos por nós continua o mesmo de 2017. Atendemos em média de 100 a 110 mulheres por mês. O que eu vejo hoje é que as mulheres têm mais acesso à informação, ao entendimento de seus direitos e conhecem a Lei Maria da Penha. Fizemos um trabalho de divulgação muito grande da lei e do CIM, e essas conversas rendem frutos, porque muitas mulheres vêm aqui depois de ter ouvido uma entrevista, uma palestra ou até após uma conhecida falar. Muitas mulheres ainda têm medo do agressor. Na realidade, como é um crime que acontece no âmbito familiar, eles conseguem passar medo nelas, dizendo que vão matá-las ou que elas vão perder os filhos ou a casa, e elas têm medo de denunciar. Então, é um crime que às vezes fica entre quatro paredes. Por isto digo que há muito mais casos do que os que aparecem aqui. Costumo dizer que existe uma “cifra negra”, que está escondida. Algumas mulheres ainda pensam que é “ruim com ele, pior sem ele”, o que não é verdade. Temos que desconstruir esse tipo de ideia, assim como “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. O município e o Estado metem sim! Temos que ajudar essas mulheres em situação de violência. As que têm medo não procuram ajuda e, por isto, esse número de homicídios espanta tanto. Conversando com a delegada Carla [Bueno], das mulheres vítimas de feminicídio em 2018, nem uma delas deu prosseguimento às denúncias, mesmo as que fizeram boletim de ocorrência. Só o boletim não é suficiente, tem que dar prosseguimento à denúncia, porque senão o Estado não tem como saber o que está acontecendo.

JM - Como o CIM estimula as mulheres que têm medo a representar contra seus agressores?

Juciara Moura - Quando elas passam pelo atendimento psicossocial, são orientadas a tomar providências. Quando a psicóloga ou a assistente social percebe que a mulher precisa de um fortalecimento, ela recebe encaminhamento para o Caism (Centro de Atendimento Integral à Saúde da Mulher). Se ela tem filhos menores e tem medo de se separar do agressor por causa das crianças, elas são direcionadas à Defensoria Pública para solução das demandas judiciais. Quando elas passam pela delegacia e são agendadas para ser ouvidas por uma escrivã, e a inspetora orienta a mulher a fazer a representação contra o agressor, é aí que começa o processo criminal. Vai chegar o momento do processo em que ele será ouvido e é aí que muitos agressores se sentem intimidados e são barrados, porque ficarão fixados. Há outros que não, mas precisamos fazer um trabalho até com os homens. Já teve agressor aqui pedindo socorro, porque gostava da mulher e não queria agredi-la mais.

JM - Será que o que está faltando são programas para desconstruir essa cultura machista de posse sobre a mulher e que ajudem os homens a não continuarem agredindo as mulheres?

Juciara Moura - Também! Inclusive, isso está previsto na Lei Maria da Penha, de haver um trabalho também com os homens a respeito desse tipo de violência. Porém, isso depende de determinação judicial. É preciso que o juiz determine que o agressor frequente um curso, assista a palestras uma vez por semana ou faça tratamento, mas não temos esse trabalho aqui. Infelizmente, a cultura machista é uma coisa muito arraigada e não conseguimos entender por que eles acham que mandam nas mulheres. Quando falo com jovens, lembro que a violência começa com pequenos detalhes. No começo do namoro, são bonitos o decote, a saia curta e o cabelo comprido. Com o passar do tempo, ele vai podando e diz que ela não vai sair de decote ou minissaia ou diz que o cabelo está chamando a atenção e que precisa cortar. São coisas sutis e a mulher vai cedendo, quando vê, é ele que dá as cartas em tudo. Sai de casa e tranca o portão pelo lado de fora. Tivemos casos de mulheres que, para conseguirem vir ao CIM, disseram que tinham horário com o médico e iam com a comadre, porque senão ele levava e buscava no consultório. Se essa mulher sofrer algo, ninguém fica sabendo. Às vezes, vizinhos fazem denúncias e não tem como averiguar, porque a vítima não pode abrir o portão.

JM - Que motivos levam um homem ao extremo de matar uma mulher? Casos de feminicídio estão sempre relacionados a outras violências sofridas pela mulher no âmbito doméstico? Por quê?

Juciara Moura - Dos casos que nós já acompanhamos, separação recente e/ou pedidos da mulher para romper o relacionamento são fatores que levam os homens a esse extremo. Eles acreditam que “já que ela não vai ser minha, não vai ser de mais ninguém”, o que também temos que desconstruir, porque ninguém é propriedade de outra pessoa. Das vítimas desse ano, duas ou três já tinham histórico de violência doméstica.

JM - Por não deixarem evidências aparentes, profissionais ou a própria vítima considera a ameaça de morte feita por um “companheiro” como sem importância... Até que ponto é preciso considerar o risco de uma ameaça em casos de violência doméstica?

Juciara Moura - É importante considerar como um risco sempre. Aqui, tanto os profissionais do centro de referência quanto da delegacia, todos são orientados a considerar essas ameaças como algo sério e real, então, têm que tomar alguma providência. Quando ela passa pela delegacia, uma das perguntas feitas à mulher é se o companheiro tem arma em casa, porque é preciso ter esse cuidado. Porém, como o crime geralmente é cometido em ambiente doméstico, muitas mulheres são assassinadas com objetos que existem em casa, como uma faca ou tesoura. Então, é preciso considerar o risco, você não sabe do que a outra pessoa é capaz. A maioria dos casos ocorre quando há laços afetivos, mas há casos que é o simples menosprezo da mulher, e isso nós não conseguimos entender.

JM - A medida protetiva, dispositivo jurídico disponibilizado pela Justiça, é um meio eficaz para proteger a mulher de novas violências no ambiente doméstico e familiar?

Juciara Moura - Considero um meio eficaz, não 100% eficaz. A delegada faz o pedido e às vezes demora cerca de 10 dias para a análise do juiz. Mas não basta só a medida protetiva. O que nós orientamos é que as mulheres também devem tomar uma série de cuidados. O oficial de Justiça entregou a medida para o homem, então a partir desse momento ele precisa respeitar a decisão judicial. Já a mulher deve cumprir também, evitando frequentar os mesmos lugares que estava acostumada a ir, deve evitar passar onde ela sabe que ele vai estar, como o trabalho dele ou o barzinho que ele gosta de ir, para que ele não ache que seja provocação. Se é para ficar a 300 metros de distância, vamos os dois respeitar. Ele fica no canto dele e ela, no dela. Se tem filhos pequenos, o juiz vai determinar a pensão e a visita, ela não precisa ligar para cobrar nada. Recentemente, foi lançado em Belo Horizonte um aplicativo que será usado por todas as mulheres que passarem pela Delegacia da Mulher de lá para que, em um momento de desespero com um agressor, seja acionado. Elas devem cadastrar o contato das pessoas de confiança, um vizinho e/ou parente, inclusive o número da polícia, para que acionem o aplicativo e peçam socorro. Isso ainda não chegou por aqui, está restrito à capital mineira, mas também é uma forma de proteger a mulher. Acredito que entre 60% e 70% dessas medidas são cumpridas, então, avalio que a medida protetiva surte muito efeito.

JM - Abordagens descontextualizadas e marcadas pela ideia de que o “homem amava demais” reforçam o lugar da mulher como responsável. Em alguma medida, pela violência sofrida, são sempre verificadas em julgamentos pelo país nos casos de feminicídio, conforme estudo da Fundação Getulio Vargas. Como a senhora vê essa questão?

Juciara Moura - Uma tese de defesa dessa, em favor de um agressor, é abominável, porque é muito fácil culpar quem não está aqui para se defender. E outra coisa, quando começamos um relacionamento, é possível perceber que se aquele tipo de pessoa não serve para você e não te agrada, você não é obrigado a ficar com ela. Se a pessoa gosta de roupa extravagante, de roupa provocativa ou que chame atenção, você não é obrigado a ficar com a pessoa. Então, já pode se separar dela lá no começo. Mas o que ocorre é que a pessoa insiste nesse relacionamento com a intenção de corrigir a outra pessoa lá na frente, depois de já ter vivido a vida toda dessa maneira. Ninguém muda outra pessoa. Há mulheres que são mais extrovertidas, outras não. Se o homem quer uma mulher recatada e introvertida, já busque alguém com esse perfil. Por que se relacionar com uma mulher extrovertida e depois querer corrigir? Não quer que ela sorria ou que ela converse com outras pessoas, é claro que vai dar problema. Defesa nenhuma pode culpar a vítima porque o “comportamento dela não era adequado”. Não há um comportamento estipulado como adequado ou não. Além do mais, não somos obrigados a ficar com ninguém. Se um comportamento não é adequado para você, separe-se dessa pessoa. Quem realmente ama, não mata. Falar que um homem mata a mulher por amor é lamentável.

JM - Como fica a situação dos filhos de casais envolvidos nesses casos?

Juciara Moura - Na grande maioria dos casos de feminicídio, a vítima era casada ou tinha algum tipo de vínculo com o assassino. E é um crime que não atinge só a mulher, atinge a família. A mulher é a vítima direta, mas as vítimas indiretas de um feminicídio são os filhos que assistiram, é a mãe ou o irmão, é o vizinho que tentou salvar, e isso nem é divulgado ou contabilizado. Com esse trauma, o que sobra é uma família toda desestruturada, principalmente se os filhos assistirem. É uma família que vai ter problemas. Podem ser futuros agressores ou assassinos e, até mesmo, futuras vítimas de outros agressores. Aliás, já são vítimas.

JM - O CIM tem algum trabalho voltado para as famílias?

Juciara Moura - Não. Nós apoiamos a mulher vítima de violência através do atendimento. Depois pode ser feita visita para saber como a família está, mas não são em todos os casos. É feito um estudo de caso, entre as profissionais, e são escolhidos aqueles que receberão a visita. Por exemplo, em um mês escolhemos 10 casos. Quando a mulher estava acostumada a ficar à mercê do marido, ingressar no mercado de trabalho não é uma tarefa fácil. Os filhos precisam estar todos em creches ou na escola para ela poder sair. Isso a assistente social e a psicóloga observam de perto, mas um apoio à família, depois que a violência acontece, infelizmente não há.

JM - Como seria possível evitar novos casos de feminicídio?

Juciara Moura - Toda relação que começa com pequenas divergências que vão aumentando - e começou com agressão física ou violência verbal - não é bom sinal, a tendência é piorar. Já recebemos mulheres que vieram a primeira vez, fizeram um boletim de ocorrência com o primeiro tapa ou soco. Um ano depois elas voltaram com relatos de braço quebrado, costela fraturada, ou seja, já está caminhando para algo bem mais sério. Então, a partir do primeiro ato de violência, a mulher já tem que procurar ajuda, porque o tapa de hoje pode ser o tiro ou a facada de amanhã.

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