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A hora mais escura

A noite costumava ser escura, durava uma eternidade e era silenciosa, mas não é mais

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 23/03/2019 às 10:39Atualizado em 17/12/2022 às 19:14
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A noite costumava ser escura, durava uma eternidade e era silenciosa, mas não é mais. Ainda se escutam latidos de cachorros nos quintais solitários. Egoístas desvairados esgoelam buzinadas, mesmo na frente dos hospitais. Ratos e baratas aproveitam os restos, cada vez mais fartos. A noite escura esconde, mas há fartura de detritos nas ruas e nas sarjetas. Há abundância de medos e de sons apodrecidos na penumbra urbana. A noite não é mais a mesma. 

A noite traz a brisa fresca e envolvente, assusta as crianças, mas estimula os namorados em suas carícias íntimas. Ah, nada como um cantinho escuro! O amor, aconchegante à meia-luz, empurra decisões rumo ao futuro e esbanja sentimentos. O suave vento noturno sussurra carinhos, segredos e implícitos desejos.

Há uma estratégia que consiste em eliminar as marquises dos prédios novos, mas, sob as que sobraram, miseráveis dormem enrolados em cobertores sórdidos, isolados do chão frio por camadas finas de papelão. Alguns ocupam as escadarias das igrejas, pois não há misericórdia tarde da noite. Os que passam desviam os olhos, sentem-se incomodados porque sabem que um dia serão eles que estarão ali. Melhor se a cidade os acolhesse, se a sociedade não os excluísse e pudesse lhes oferecer abrigo. A escuridão oculta a miséria, o sem-teto, o faminto, o velho, o pobre coitado. Ao lado de um deles há um cachorro encolhido, companheiro de infortúnio face à cegueira da civilização tecnológica e suas relações superficiais. Será que não se esforçam o suficiente e então se camuflam na noite com seus trapos tristes?

A cidade dorme, os cidadãos estão trancados, com medo da violência subjetiva, mas a televisão continua ligada e barulhenta. Seu brilho expõe velhos e novos monstros. A programação é infinita e se estende por meses a fio, repetindo antigos clichês e ilusões prosaicas. Há uma tentativa óbvia de burlar a noite e obscurecer a vida.

Alguns jovens se dirigem à praça escura para cantar velhas canções de amor e admirar as estrelas. Um deles usa drogas, outro fuma um cigarro importado, dois bebem generosos goles de cachaça na boca da garrafa, sem cerimônia ou descortesia. Faz frio, mas a música entorpece, embala, faz sonhar com um mundo diferente. Não causam mal a ninguém, apenas procuram sua própria luz na noite sisuda. Sua angústia é errar nas tentativas de desvendar as engrenagens que os esmaga. A tarefa urgente é descobrir como derrubar os muros que os separam do dia seguinte. Um casal se abraça e jura amor eterno. 

A hora mais escura é quando se acorda sem ter dormido, quando não existem perspectivas nem a compreensão da realidade e não há sequer um abajur na cabeceira. Poucos conseguem entender que não há nada mais verdadeiro do que um dia após o outro, e que depois da noite mal-humorada amanhecerá um belo dia de sol. Você consegue?

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