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O velório do Anão

Nos idos do início dos anos 60, em uma pacata e típica cidade do interior de Minas, chegou um Circo cuja...

Luiz Cláudio dos Reis Campos
Publicado em 14/01/2013 às 08:51Atualizado em 19/12/2022 às 15:19
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Nos idos do início dos anos 60, em uma pacata e típica cidade do interior de Minas, chegou um Circo cuja estrela principal era um anão acrobata. Ninguém de lá jamais tinha visto um anão, quem diria acrobata. Virou celebridade. A população era um delírio só. Pegaram o anão e o levaram para um programa saudável e parada obrigatória para quem visita a cidade: a famosa sorveteria “Picolé da própria fruta”. O que infelizmente não sabiam é que o anão adorava picolé, mas não podia exagerar, pelo próprio tamanho dele e por uma intolerância a algumas substâncias de certas frutas, que de próprias tinham pouco os picolés. Pronto, o anão se deliciou e empanturrou-se de tanto chupar picolé da própria fruta. Não deu outra, convalesceu, pneumonizou rapidíssimo, estrebuchou e morreu nos braços do povo. A comoção generalizou-se. A zona rural baixou em peso, fizeram caminhada com o corpo do anão por toda cidade, convidando pro velório na Câmara Municipal, com direito à visitação pública para renderem-lhe as últimas homenagens. Tudo foi feito com o rigor e a qualidade exigidos pelo prefeito. Muitos quitutes, café, carpideira e discurso emocionado de políticos locais e da região. Teve gente  de toda redondeza e outras além cercanias. Como não podia ser diferente, o velório foi raleando, a devoção e curiosidade foram dando lugar ao sono. A madrugada caiu, restaram os dois guardas da cidade, o coveiro que, por via das dúvidas, podia sobrar pra ele caso o anão fosse enterrado por lá mesmo e o Nenzim, que jamais perdera um velório e como sempre era o último a sair, independentemente do defunto. O desfecho ficou interessante porque Nenzim sempre permaneceu em todas as ocasiões em um estado etílico linear e padrão, bêbado, porém com tons de sobriedade, astúcia e inteligência. Quando Nenzim se deu conta de que estavam apenas ele e o anão no salão principal da Câmara e que os outros poucos foram pra cozinha tomar café e comer os pães de queijo restantes, indignou-se e foi ao alcance deles. Revoltado, bradou brav “oceis tá muito folgado, me deixa sozinho cuidando do anão. Eu já afujentei o gato de lá treis veis pra não pegá o anão e fugi com ele. Ceis vai lá cuidá também, senão o gato leva, enterra e não acha mais anão não”. Depois disso, o corpo do anão desapareceu, ninguém sabe ninguém viu. Os circenses colegas do anão e dono do Circo não falaram nada no dia seguinte e se foram como se o anão não existisse. Bom, esta história quem me contou foi o Nenzim, quero acreditar, mas tem hora que não sei se o Nemzim tá zombando de mim. Perguntei-lhe: Nenzim, se o anão sumiu, cadê o gato? Respondeu: foi pro mato. Perguntei: cadê o mato? Contraditou: o fogo do Nenzim queimou. Retomei: cadê o fogo? Disse: tá queimando o papo do Nenzim. Falei: beba água que apaga... Por nenhum anão, nem mesmo o Praga eu tomo água, sentenciou Nenzim de papo quente... Ficou por isto. Fico às vezes inclinado a acreditar que esta história é fruto da fértil e etilíca imaginação de Nenzim, porém a todos de lá que perguntei nenhum o desmentiu. Gente de lá é assim mesmo, solidária, fiel, especial. Deve ser porque permanece embalada pelos causos que neles se identifica e preserva a origem e a convivência desinteressada como um patrimônio inestimável a distingui-la, onde quer que esteja.

Texto inspiração em um dos inúmeros causos contados pelo meu amigo irmão, artista nato, engenheiro  Ronaldo Ramos Costa (Coró), embaixador emérito e vitalício de Coromandel, em qualquer parte do Mundo onde se ache.

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