ARTICULISTAS

Os meninos da cachoeira

Já não mais vivem essa saudade

Manoel Therezo
Publicado em 16/06/2012 às 20:39Atualizado em 19/12/2022 às 19:05
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(Já não mais vivem essa saudade)

Como outros, também tenho coisas para contar. Lá pelos meus doze ou quinze anos, andei descalço nas poeiras de Jardinópolis, pertinho de Ribeirão Preto (SP). Até então, um lugarejo pobre, desprovido de esperança. Tão logo que para lá mudamos, fui me aproximando doutros meninos que também de mim se aproximavam. Logo formamos um bando de seis de calças curtas e de pés descalços. Guardo ainda os seus nomes na minha saudade. Pela manhã, por volta das nove horas, sob um sol claro, quente e forte, partíamos pelos trilhos da maria-fumaça, rumo a um poço que fizemos, logo abaixo de pequena queda d’água em um rio pouco caudaloso. Era a cachoeira por nós chamada — mas de cachoeira, não tinha nada. Todos os dias, era esse o nosso primeiro rumo. Sobre aqueles trilhos, andávamos de mãos dadas para melhor equilíbrio. Assim de mãos pegas, corríamos como se não estivéssemos sobre eles. Quando da cachoeira estávamos nos aproximando, em disparada correria e numa barulhada de ensurdecer, já sem roupas também estávamos para nos refrescar em suas águas. Algumas vezes, estavam sujas, cor de barro. Mesmo assim, sem darmos importância, de mãos dadas, contávamos até três e pulávamos os seis ao mesmo tempo naquela imundície. Dias depois, descobrimos que o fazendeiro de quem raramente roubávamos pequenas melancias em sua roça era quem fazia aquela imundície para nos afugentar de lá. Esperava que algumas de suas melancias não mais fossem furtadas —, mas o seu projeto não resultou como esperava, porque, de quando em quando, aquela façanha se repetia. Penso hoje, se o fazendeiro tivesse conversado com os meninos, certamente não teria suas melancias roubadas, porque todos entenderiam o seu direito. Tal não aconteceu. Certa manhã, naqueles trilhos da maria-fumaça, correndo de mãos dadas como de costume, já sem camisas como sempre, chegávamos aos barrancos da cachoeira. Que beleza!... Que beleza!... Águas clarinhas!... Que loucura!... Naquele dia, se de mãos dadas como assim fazíamos, pulássemos os seis, o que seria de nós? Como voltar para casa? Que horrível surpresa! O nosso colega Cide Ruas, impulsionado pelo insuportável calor e pela beleza das águas, pulou primeiro. Horrível coisa nos encheu de pavor. Cide quase perdeu os pés. Aquele fazendeiro havia jogado naquele poço muitos cacos de vidros. Aos borbulhões, um sangue mudava cor daquelas águas clarinhas. Aos gritos de desespero e de dor, muito ensanguentado, foi retirado por todos nós da cachoeira. Em alvoroço, enrolamos com nossas camisas os pés do nosso companheiro, que gritava como que alucinado. O sangue não parava. Para levá-lo até Jardinópolis, foi-nos trabalhoso, porque o Cide não era assim tão leve e a distância também não era curta. Uma luta... De quando em quando, passava para as costas do outro. Não me lembro como o Cide ficou depois daquilo. Com certeza, com os pés cheios de cicatrizes. Nunca mais voltamos ao poço da nossa alegria. Assim, aquele ignorante fazendeiro encontrou a forma de não mais ter as suas pequenas melancias roubadas. Hoje, na minha lembrança, pergunto, onde estarão por certo aqueles meninos da cachoeira? Por natural, alguns noutra dimensão. Já não mais vivem, como vivo ainda, essa saudade.

(*) Odontólogo; ex-professor universitário

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