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Naquela beleza que Deus criou (Um fato verídico)

Faz muito tempo – mas aquele quadro ficou nas minhas recordações

Manoel Therezo
Publicado em 26/11/2011 às 19:51Atualizado em 19/12/2022 às 21:13
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Faz muito tempo – mas aquele quadro ficou nas minhas recordações. Éramos quatro ignorantes e perversos. Não consigo até hoje compreender, que prazer nos dava atirar em inocentes pássaros – mas íamos atirar neles. Cada qual de arma em punho, valentões caçadores de pássaros indefesos. Todos nós em roupas de cor verde para  bem nos camuflar entre galhos e folhagens, íamos surpreender lindas aves que, sem de nada saber, nos permitiam chegar pertinho delas.

Quantas de coloridas e belas penas, tombaram aos nossos tiros e por lá entre ramagens de difíceis acessos ficaram! Quão primitivos!... Bestas humanas, atirando naquelas belezas que alegravam as matas que acompanhavam os serpenteados do Rio Grande. Seguíamos em um carro por uma estrada estreita, toda ladeada por um capim grosso, alto e verde-escuro, cheia de curvas e de poucos trechos retos.

O carro desenvolvia uma velocidade propositalmente lenta. Era preciso que assim fosse tocado porque, dentro dele estavam quatro valentes caçadores com suas espingardas prontinhas para matar. Cada um ocupava uma janela no carro. Cada um mais que o outro, numa atenção extraordinária de imbecil humano, espreitava tudo ao redor. O carro continuava vagaroso naquela estrada de mil voltas.

Eis que, repentinamente numa das curvas, um casal de aves enormes e lindas, amantes por certo, surpreendeu a nós, caçadores alegres. Que momento de prazer nos vinha dar aquelas belíssimas aves correndo em passadas largas por onde os matadores haveriam de passar. Um tiroteio se iniciou das janelas do carro. Que gritaria e que desespero para de novo colocar outro cartucho na espingarda. Os tiros não paravam – elas também não... Corriam em passadas largas e rápidas. Não sei por que não voavam? Corriam uma à frente da outra. A mais à frente, de quando em vez olhava para trás e piava. Por certo naquele piado, incentivava a mais vagarosa a correr.

Os caçadores atiravam sem acertá-las por falta de mira ou porque Deus fazia o carro balançar demais. Elas corriam e piavam apavoradas. Uma bem mais rápida que a outra. Num descuido de Deus, um de nós caprichoso na mira, atirou... Um disparo certeiro, prostou sem piedade aquela que corria mais lentamente. Caiu sobre si mesma, rolando nas poeiras daquele caminho, suas brancas penas ensanguentadas. Não sabemos quem acertou. Quando a ave que na frente corria olhou para trás e viu a sua companheira caída sem lhe responder os pios, estacou-se com as duas pernas como freios solicitados na emergência de um perigo. Arrastou-se naquela freada, alguma distância nas poeiras onde perdia o seu amor. Parou... Também paramos... Ele piando e nós perplexos olhando aquele espetáculo que fizemos.

Chegou ao lado daquela ave linda, quieta e sem vida. Deu-lhes alguns beijos – para nós bicadas, porque não entendemos as aves. Por algum tempo permaneceu parado ao lado daquela beleza inerte, possivelmente pensando como ficamos nós quando desaba o nosso mundo. Levantou o seu voar. Foi um pouco além. Voltou... Inconformado, beijou novamente aquela beleza. Certificou-se de que aquilo não lhe era um sonho.  Incrível!... Incrível!... Sem dela se afastar, ainda ao lado daquela companheira, com as pernas bem estiradas, levantou o corpo e assim ficou firme nos olhando como que também disposto ao mesmo destino.

Naquele instante ante aquele cenário nunca visto, ante aquela coragem jamais imaginada, compreendemos que roubávamos do seu mundo, a alegria do seu viver. Um silêncio profundo se instalou naquele carro. A caçada se findou por ali. Voltamos aquietados. Silêncio profundo, próprio dos assustados. Aquela ave sozinha voando e piando sobre nós, veio nos acompanhando até bem perto da cidade. Sem parar de piar, deu suas últimas voltas sobre o carro. Dali se foi piando para continuar vivendo em choro, como vivemos quando a arma do destino dispara o seu tiro que derruba o nosso amor. Aquela ave que se foi sozinha e piando, não sabe quem foi... Também nós não sabemos quem atirou. Todos nós éramos caçadores. Todos nós atiramos NAQUELA BELEZA QUE DEUS CRIOU...

(*) Odontólogo; ex-professor universitário (Odonto Uniube)

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