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Fera

Manhã de verão, segunda-feira, e lá vou eu em mais uma caminhada depois de alguns alongamentos

João Eurípedes Sabino
Publicado em 21/10/2011 às 21:45Atualizado em 19/12/2022 às 21:45
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Manhã de verão, segunda-feira, e lá vou eu em mais uma caminhada depois de alguns alongamentos.

Passei por um trevo e andei alguns metros antes de entrar numa estrada particular, sob chuvinha fina, usando boné e moletom. Bem à frente vi um cão ou cadela junto a uma Kombi. O veículo aguardava crianças para levá-las à escola. De pé nas patas traseiras e as dianteiras apoiadas na porta, com a cauda abanando, o animal "falava" com o motorista. Ambos dispensavam atenções mútuas pelo visto, há algum tempo.

Quando me aproximei, guardei reservas. Aquela boca preta de corpo escuro rajado, porte médio e tetas alongadas, largou o carro e fez festa comigo. Comprovei, portanto, que era uma cadela.

Percebi depois que estava sendo seguido pelo animal a distância. Ela andava e parava... andava e parava...

Quando criança aprendi a emitir um assobio em alta frequência e o fiz naquele momento. Não deu outra, nos tornamos amigos em poucos minutos. Ora perto de mim, ora corria, levantando pássaros das árvores, ou rolava no capim. Ela demonstrava que sabia fazer muita coisa.

Tentei lhe dar alguns nomes, mas ela ficava indiferente. "Fera", não sei por que, lhe caiu melhor e passou a obedecer-me.

De repente quase na linha do horizonte, vi desaparecer na braquiária aquela "madame do mundo". Em posição de ataque ela rastejava atenta sobre a vegetação. Um rebanho escapado do pasto vaguejava furioso sobre a estrada. Eram belas e seletas matrizes nelores. As guampas afiladas podiam ser vistas com nitidez e a índole bravia da raça nós conhecemos muito bem. Fiquei temeroso. Voltar? Seguir? Conheço tanta história com resultado desastroso que preferi cuidar da minha. Eu estava cercado.

A única chance era estumar a cadela amiga e confiar-lhe a minha guarda. Ela, numa cena de cinema e demonstrando incomum coragem, peitou os chifres da vacada e com jeito de quem sabe, latindo pouco, conduziu todas ao pasto e para bem longe. Lembrei-me do boi soberano de Barretos cantado pelo meu ídolo Tião Carreiro.

Assisti aliviado a todo o trabalho da amiga, que depois veio deitar-se cansada junto a mim. Dez páginas seriam poucas para registrar o que senti.

Quando retornamos ao lugar do nosso encontro, a Kombi havia partido e Fera desapareceu numa direção que eu não vi. Assoviei várias vezes, sem resposta.

Até hoje não sei de onde veio para proteger-me e nem para onde foi aquela figura que jamais encontrei. O cão é, ou não é, o maior amigo do homem?

(*) Membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro

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