ARTICULISTAS

O Homem que Enxergava com os Olhos da Alma

Olga Maria Frange de Oliveira
Publicado em 17/12/2018 às 06:47Atualizado em 17/12/2022 às 16:30
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Essa definição do músico João Tomé, “o homem que enxergava com a alma”, nasceu da sensibilidade do jornalista Ataliba Guaritá Neto, o nosso inesquecível Netinho. Quem, senão ele, poderia traduzir tão bem a grandeza desse ser humano tão especial?

Nascido em Uberaba em 1920, cego de nascença, de família humilde, construiu uma história de vida impressionantemente rica.

Como na época não havia em nossa cidade, ou nas proximidades, escolas especializadas em alfabetização de portadores de deficiência visual, foi impedido de frequentar uma escola formal. Dessa forma, Tomé fez suas próprias descobertas sobre o mundo que ele não via por meio dos outros sentidos: do tato, da audição, do paladar, bem como pelas informações que recebia das pessoas que enxergavam. Sua família foi muito importante na formação de seu caráter.

Curioso, inteligente e dono de um raro talento para a arte dos sons, tornou-se músico multi-instrumentista, pois tocava sanfona de oito baixos, viola, violão, cavaquinho, flauta e instrumentos de percussão. A sanfona, aprendeu com o pai, Antônio Thomé; a viola, que ganhou do pai quando tinha 10 anos de idade, e os outros instrumentos de corda, com integrantes da família que tinham conhecimento musical; a flauta transversa (presente de um tio), com o exímio flautista Antenógenes Magalhães; os instrumentos de percussão, aprendeu sozinho, como autodidata, construindo artesanalmente a cuíca, o chocalho feito de cabaça e o pandeiro.

Há um episódio em sua vida que me tocou profundamente e que nos remete ao Tomé com seus onze anos de idade. Seu pai, que trabalhava na Mogiana, sugeriu que ele tocasse sanfona no trecho Uberaba/Araguari/Uberaba. Ele achava que o filho, com seu talento musical, poderia reforçar a renda familiar com as gorjetas.

Para surpresa dos familiares, o menino não só recusou veementemente, como passou a demonstrar repulsa pelo instrumento. O fato nos revela um caráter altivo e reto. Sem perceber, seu pai tinha transformado sua arte musical numa arte subalterna, despida da nobreza que ele, embora criança, tinha compreendido surpreendentemente bem.

Quando João, aos 16 anos, lançou suas primeiras composições, encontramos num jornalzinho local intitulado “A Marreta”, o seguinte registr “(...) João Tomé é um jovem inteligente que dedicou-se à difícil arte da música. Toca como verdadeiro mestre diversos instrumentos. Compõe músicas comovedoras, com letras divinamente fundamentais. É um verdadeiro gênio que, com um pouquinho de estudo somente, poderia figurar entre os melhores compositores do país”.

Tomé fez da música a sua vida. Encontrou nela uma sublime missão. Em 1940, foi contratado pela Rádio Difusora de Uberlândia (PRC-6), para dirigir o Regional da emissora. A partir de 1936, integrou diversos conjuntos musicais em Uberaba, assumindo o Conjunto Regional da PRE-5 em junho de 1941, onde atuou por quase 20 anos. Paralelamente, foi professor de música no Instituto de Cegos do Brasil Central, de 1946 a 1959, tendo realizado um trabalho exemplar, chegando a criar, em 1947, um grupo musical muito bom, com alunos internos do Instituto. Alguns anos depois, foi convidado a organizar e dirigir o Conjunto da Boate Yucatan, a mais bela boate do interior do Brasil, onde tocou de 1956 a 1959. Nela se apresentaram os maiores astros da música popular da época.

Depois de atuar 24 anos no cenário musical uberabense, em fevereiro de 1960 seguiu para Brasília, dois meses antes da inauguração da nova capital, levando com ele seus sonhos, sua esposa grávida e seus cinco filhos. Lá prosseguiu sua carreira profissional como músico contratado da Rádio e TV Nacional, além de manter um conjunto que tocava na Boate do “Brasília Palace Hotel”, ponto de encontro da cúpula política do país, como Lúcio Costa, Juscelino Kubitschek, Oscar Niemayer e muitos outros.

Morreu em 1971, aos 51 anos, deixando cerca de 600 obras musicais nos mais variados gêneros da música popular, sendo que 295 delas foram transcritas em braille. Foi cofundador da Escola de Música de Brasília e deixou seu nome inscrito na história do choro da capital federal, como intérprete e como compositor. Foi um dos pioneiros que lutaram pela criação do Clube do Choro.

Uberaba deve reverenciar seu filho ilustre que semeou sua música por onde passou, iluminando seus caminhos com a arte que brotava de sua alma de artista como fonte cristalina.

(*) Olga Maria Frange de Oliveira

Pianista, professora, maestrina, regente do Coral Artístico Uberabense, pesquisadora da História da Música em Uberaba, ex-Diretora-Geral da Fundação Cultural de Uberaba 

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