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Voltei ao passado

Renato Muniz, em seu último e excelente livro de crônicas, logo no início me fez voltar

Padre Prata
Publicado em 22/09/2018 às 10:44Atualizado em 17/12/2022 às 13:43
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Renato Muniz, em seu último e excelente livro de crônicas, logo no início me fez voltar aos meus tempos de criança. Fez-me lembrar das receitas de minha mãe, da medicação de Dona Quita. “Muita coisa aprendi com Vó Laura”, assim dizia ela. Contou-me que sua avó era perita nas artes de cozinha e receitas. No fim do século dezenove, tinha licença oficial para clinicar. Como conseguiu não sei nem me contaram. Coisas dos velhos tempos dos “coronéis”...

Lembro-me muito bem dos remédios e prescrições de minha mãe. Vivi doze anos na fazenda. Médico era coisa quase impossível naquele tempo e lonjuras. Condução para o “Centro” era um problema. O recurso era apelar para a medicina caseira. Para “a horta de couve”, como dizia.

Sou daquele tempo em que a gente não podia “andar de fasto” nem podia apontar estrelas. Matar passarinho podia, com exceção de João-de-barro e beija-flor. Andar descalço no curral provocava mijacão, o que até hoje não sei o que era nem me contaram. Comer manga verde era expressamente proibido, causava colerina. Esse nome colerina dava pânico, muito embora eu não soubesse o que era. Ainda não sei. Aconselhavam-me a não comer frutas pela manhã. Misturar manga e banana era mortal. Jabuticaba, só três horas depois do almoço. Lima nem pensar, era fruta fria, ocasionava acessos. Havia ainda o perigo do sereno. Não nos era permitido “brincar no sereno”, corríamos o perigo de “difluço e constipação”. Vivíamos muito felizes e saudáveis. A única doença que me pegou na infância foi sarampo, que a Dona Quita curou com flor de sabugueiro.

Humberto Eco, em seu livro “O Nome da Rosa”, faz uma lista de plantas e recursos medicinais em voga na Idade Média. Fiquei admirado ao descobrir que quase todas aquelas plantas são as mesmas de hoje. Essa cultura curativa vem de centenas de anos antes de nós. São milenares. Quem as descobriu ninguém sabe. Vêm de uma sabedoria popular perdida na imensidão do passado.

A leitura desse livro me fez voltar aos canteiros de minha mãe. Hortelã, camomila, erva-cidreira, salva, melissa, arnica, losna, bálsamo, poejo, funcho, são-caetano, alfavaca e muitas outras. Havia ainda as plantas do mato, o chapéu-de-couro, cipó-de-cascavel, fava de sucupira, congonha-do-campo, casca de quina.

Além das plantas, havia outros recursos medicinais. Uma vez por ano, tínhamos de tomar lombrigueiro (Panvermina), tomar um purgante (óleo-de-rícino ou sal de Glaubert). Uma tortura aquela medicina de Dona Quita.

Estava me esquecendo dos fortificantes. De uso obrigatório eram dois. Todos os dias tínhamos de tomar, pela manhã, um copo de leite cru com açúcar mascavo e um pouco de conhaque. O leite era tirado do peito da vaca diretamente em cima dessa mistura. Era uma copada espumante e quente.

Havia um outro fortificante fabricado por ela. Numa garrafa de vinho tinto ela acrescentava cascas de quina, ruibarbo, canela, umas folhas não sei de que e um prego enferrujado. Aquela garrafa era enterrada durante oito dias. Era um depurador do sangue.

Não vou fazer nenhum juízo científico sobre essas beberagens e recursos de minha mãe. Só de uma coisa eu sei: lá em casa ninguém morre com menos de oitenta anos...

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