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Feliz mesmo é o vira-lata

Vários amigos têm me procurado oferecendo-me um cão de guarda. O motivo é sempre o mesmo

Padre Prata
Publicado em 15/09/2018 às 11:45Atualizado em 17/12/2022 às 13:29
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Vários amigos têm me procurado oferecendo-me um cão de guarda. O motivo é sempre o mesmo. Com tantos ladrões, a segurança é necessária. Tenho recusado sempre. Penso que jamais terei um cãozinho como companhia. É um hobby que não me atrai muito. Conheci um cãozinho que só comia bombons Sonho de Valsa. Conheci outro cujo dono era um bispo. Chamava-se Kalós, que em grego significa “bonito”. Tinha todas as regalias episcopais. Por isso, quando morreu, deve ter ido direto pro céu. Na casa de um amigo meu havia uma cadelinha basset. Era cega, mas, por duas vezes me mordeu o calcanhar. Ignoro por quê.

Por essas e outras razões não tenho cão em casa. Isso não significa que eu não goste deles. Gosto sim, mas não de todos. Toda minha simpatia é mesmo para o vira-lata, carinhosamente apelidado de street dog, o que lhe proporciona certa dignidade racial. O vira-lata é o indestrutível cão de rua, sem cor, sem raça, sem pedigree, sem coleira, sem canil, sem rumo.

O vira-lata é antes de tudo um livre. Vai onde quer e faz o que bem entende. Não lhe empurram dietas balanceadas, come o que bem entende. Ninguém o põe de castigo se faz alguma “cachorrada”. No meu tempo de criança, a prefeitura tinha uma carrocinha que catava os coitadinhos para fazer sabão. Hoje nossos governantes falam muito em “razões sociais”.

O vira-lata aproveitou a onda e embarcou. Agora andam às dezenas pelas ruas, tranquilos e lampeiros, graças à sensibilidade social de nossos representantes políticos.

O vira-lata não se amarra a dietas e rações. Nem vermífugo lhe dão. Se adoece, sara por aí mesmo. Não lhe cortam o rabo nem as orelhas. Cachorro de rabo cortado perde a dignidade. Eles se orgulham de andar pelas ruas conservando suas características pessoais. O vira-lata não se preocupa com essas conversas furadas de árvore genealógica. Árvore que conhece é aquela da esquina que ele usa com finalidades óbvias. Não conhece o pai nem a mãe. Desconhece as diferenças entre um boxer e um pointer, entre um fox-terrier e um golden retriever. 

O vira-lata não pertence a nenhum clube. Nem sabe se existe um Kennel Club. Talvez saiba que há cães de alta linhagem. Mas isso não o preocupa. O que o preocupa é sua liberdade de ir e vir. Às vezes, fica sabendo que há concursos de cães de raça. Comparece. Fica do lado de fora, só para ver. Olha tudo aquilo com muita tristeza. Chora. Vê aqueles canzarrões bonitos, de coleira antipulga, cheirando a xampu francês, escovadinhos, fresquinhos. Vê e filosofa: “Que vida de homem eles levam...” Por isso é que não se prende a nada. Nem dono tem. É livre. Dorme onde quer e cruza com quem quer. E assim continua seu caminho, sem coleira e sem corrente rumo à lata de lixo mais próxima. Bom mesmo é ser livre, mesmo sendo um vira-lata.

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