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Maçã do amor

Vez por outra a gente volta ao passado. Acontecimentos emergem do subconsciente. Por quê?

Padre Prata
Publicado em 22/07/2018 às 10:47Atualizado em 17/12/2022 às 11:43
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Vez por outra a gente volta ao passado. Acontecimentos emergem do subconsciente. Por quê? Não sei. Um exempl Ano de 1935. “Visita para você”, avisa-me o Reitor. Fui até a portaria. Lá estava alguém, de pé, à minha espera. Era ele, o Gumercindo, um mulatão que trabalhava na fazenda de meu pai. Como sempre, de chapéu e polainas. Todo mundo falava que era mentiroso, conversador e trapaceiro. Pegava cobra viva, virava sapo do avesso e morria de medo de mandruvá.

Era ele mesmo. Viera me visitar no internato. Contou muita coisa lá de nossa fazenda, a Estiva. Antes de despedir-se, tirou do bolso uma moeda de 500 réis: “Para você comprar uns doces”. Naquele tempo, 500 réis eram para criança um bom dinheiro. Fiquei feliz. Voltei para a sala de estudos acariciando, no bolso, aquela moedinha quente. A figura esgalgada do Gumercindo sempre me enternecia. “O que falavam dele era mentira”, pensava.

A história dessa moedinha explica, de certo modo, um tipo de comportamento em minha vida: não sei negar dinheiro às crianças que me pedem. Sei que, na maioria, são uns malandrinhos. Sei que são muito mais vivos que o Gumercindo. Sei que estão me enganando. Sei que não têm nenhum irmãozinho precisando de leite. Sei de tudo isto, mas não resisto, dou a moedinha assim mesmo. Faço isso porque me lembro daquela moedinha de 500 réis que me fez, um dia, tão feliz.

Não faz muito tempo, alguém tocou a campainha de minha casa. Eram sete horas da noite e chovia bastante. Ao abrir a porta, vi, diante de mim, uma criança. Não tinha mais de dez anos. Estava muito suja, cabelos despenteados, uma maçaroca empapada de chuva. Chorava baixinho, olhando para o chão, humilde. Na mão, um pequeno tabuleiro, onde se via uma maçã do amor. Soluçando, começou a falar: “Moço, minha mãe me mandou vender essas maçãs. Uns meninos da rua me pegaram, me bateram e me tomaram as maçãs. Estou com medo de voltar para casa porque vou apanhar muito de minha mãe. Será que o senhor podia me comprar essa que sobrou? Me ajude, moço”. Acreditei no garoto. Acreditei naquelas lágrimas. Acreditei naquela história. Lembrei-me da moedinha do Gumercindo e me enchi de compaixão. “Olhe aqui, vou te ajudar. Qual o preço de todas as maçãs que te roubaram?” O diabinho deu o preço, era razoável. Paguei e fui dormir com a consciência tranquila.

Dias depois, contando a história a vários amigos meus da mesma rua, tive a maior surpresa. Aquela mesma história tinha sido contada para vários deles, naquela mesma noite de chuva. Também alguns deles compraram as maçãs do amor daquele mesmo garotinho de cabelos encaracolados, de olhos tristes e falinha mansa. Um anjo de candura.

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