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A encomenda veio no caminhão leiteiro

Eu sempre gostei de ler, mas, quando criança e adolescente, nem sempre a gente lia o que queria

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 20/05/2018 às 14:38Atualizado em 16/12/2022 às 01:26
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Eu sempre gostei de ler, mas, quando criança e adolescente, nem sempre a gente lia o que queria, a escola não deixava. O jeito era ler nas férias; durante o período letivo sobrava pouco tempo fora das obrigações, das tarefas e de outras distrações. Hoje, são tantas as desatenções que nem sei como alguns ainda conseguem ler! É que, às vezes, uma boa leitura exige silêncio, concentração, tempo... Certas coisas ficaram escassas.

Na escola, as leituras eram engessadas, não havia abertura para discutirmos autores, livros, temas interessantes, segundo nosso ponto de vista. Líamos os clássicos, os autores ditos consagrados, portugueses e brasileiros. Um dia, perguntei ao meu professor de literatura sobre Jorge Amado. Levei um susto. Ele arregalou os olhos e disse: esse não! Falou que sua escrita era muito popular, que escrevia para inflamar o público e que não era literatura para se analisar nas aulas. Fiquei sem entender, mas era como se uma faísca tivesse sido acessa, uma faisquinha que ficou ali, na minha cabeça, ardendo. A curiosidade aumentou quando soube que o motivo da tristeza de uma prima era ter sido proibida de ler os livros do escritor baiano.

Vasculhei a estante dos meus pais, à qual, felizmente, eu tinha livre acesso, e encontrei vários livros do Jorge Amad O País do Carnaval, Cacau, Suor, Jubiabá, Capitães de areia, O cavaleiro da Esperança, Mar Morto... Vendo meu interesse, minha mãe colocou na vitrola o disco do Caymmi com as canções do mar. “É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar...” Tinha escolhido minha leitura das próximas férias.

Fui para a fazenda e chegando lá, cadê o livro? Esqueci. Estava inconformado! Nos anos 1960, no meio rural, a comunicação era complicada, as encomendas vinham pelos leiteiros. Notícias, pães, remédios, querosene, produtos veterinários, etc., tudo vinha pelo caminhão leiteiro. O leite era transportado em latões de metal de 50 litros, uma bagunça organizada. O leiteiro media o leite, anotava num papelzinho, entregava ao encarregado da fazenda e levava uma cópia consigo. Era a única certeza que tínhamos: o leiteiro nunca falhava, fosse sob o sol quente, poeira ou debaixo de uma chuva daquelas de derreter pedra. Ele dava notícias de todos, trazia cartas, levava frutas, tudo misturado aos latões de leite, sacolejando em péssimas estradas de terra. A solução foi pedir ao leiteiro que entrasse em contato com minha mãe e me trouxesse o livro.

Dois dias depois, a encomenda chegou, embrulhadinha em papel pardo, amarrada com barbante e o nome da fazenda, nada mais. Eu não conhecia a Bahia, poucas vezes tinha ido à praia, mas em minhas mãos eu tinha a literatura que eu queria ler. Li na varanda, olhando os campos suaves do Cerrado, pensando nas ondas do mar... Ao entardecer, eu compreendi que as histórias também servem para emocionar e produzir tensões.

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