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O brilho da poesia

Eu nunca tinha visto coisa igual ao brilho das panelas de Dona Auristela, elas reluziam. Que capricho!

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 11/02/2018 às 00:14Atualizado em 16/12/2022 às 06:26
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Eu nunca tinha visto coisa igual ao brilho das panelas de Dona Auristela, elas reluziam. Que capricho! Sua cozinha estava sempre limpa, nada fora do lugar. Como curiosidade de menino não tem cabresto, um dia eu perguntei como era possível deixar as panelas tão brilhantes. Ela disse que areava. Fiquei sem entender e não me dei por satisfeito, mais tarde eu voltaria ao assunto.

Dona Auristela cuidava da sede na fazenda do meu avô. Quando estávamos lá, ela fazia a nossa comida. O sabor era delicioso, o tempero, o arroz soltinho, o feijão no ponto, até a salada ficava boa; difícil menino gostar de verdura, né?

Mais tarde, dei um jeitinho de entrar na cozinha, ela não gostava que entrássemos ali, mas eu fui de enxerido, e tratei logo de xeretar a pia. Vi sabão, desses feitos na roça, palha de milho, uma pedra e um potinho cheio de areia. Foi aí que compreendi que arear tinha tudo a ver com areia, ela passava areia fina nas panelas, lavava com perfeição, quase obstinação.

Enquanto brincávamos no quintal, acompanhávamos os serviços no curral, nadávamos nos poços limpos do ribeirão da Ponte Alta, ela cuidava da cozinha, lavava e pendurava as panelas nas paredes, passava pano no chão. Na hora do jantar, tudo estava pronto, preparado, gostoso.

Aquela organização me encantava. A lenha, cortada em tamanho padronizado, separada dos gravetos, dos sabugos, da palha. Os panos de enxugar as mãos, pegar as panelas quentes e secar a louça eram lavados diariamente. O fogão encerado com vermelhão, tudo muito simples, mas feito com dedicação e carinho. Vez ou outra, ela se espantava com nossa displicência, com nosso descaso em relação às regras, incompreensíveis para nós, como horários, a proibição de leite com manga e outras normas que quebrávamos, ainda que com reverência.

Nessa época, eu estava encantado com “Libertinagem”, do Manuel Bandeira. Seus 38 poemas apresentavam uma poesia livre, solta... Alguns deles fazem parte, até hoje, da minha memória poética: “Diga trinta e três, trinta e três...” Que maravilha! “Pneumotórax” e seu “tango argentino”. "Poética”: “Estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado...”. Era uma espécie de senha revolucionária: “Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”. Sei lá como interpretávamos, mas era mágico. Se algo desse errado, iríamos embora: "Vou-me embora pra Pasárgada". Não tinha coisa melhor!

As panelas e a comida da Dona Auristela eram pura poesia, assim como o texto do Manuel Bandeira, que brilhava no nosso imaginário adolescente. Certa vez, me distraí e esqueci o livro sobre a mesa, deixei pra trás o livrinho de estimação. Fiquei chateado, mas, na hora do jantar, vi que ela tinha guardado, embrulhadinho num pedaço de papel pardo. Que alívio! Afinal, estava em boas mãos.

Manuel Bandeira (1886 – 1968). Para nos lembrarmos do grande poeta no cinquentenário de sua morte. “Libertinagem” foi publicado em 1930.

(*) Renato Muniz B. Carvalho

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