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A casquinha do machucado

Às vezes, somos para a vida como uma casquinha de machucado. Foi a primeira coisa que pensei quando, depois de andar muito...

Julia Castello Goulart
Publicado em 04/12/2017 às 14:27Atualizado em 16/12/2022 às 08:33
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Às vezes, somos para a vida como uma casquinha de machucado. Foi a primeira coisa que pensei quando, depois de andar muito, um machucado se formou no meu calcanhar. O machucado causado por uma bolha, que se abriu, colocou toda a minha pele mais sensível à mostra. Mesmo com toda uma camada de proteção que criamos por cima de nós mesmos, viver significa colocar essa proteção à prova... e muitas vezes nos machucamos e nos expomos.

É normal falhar, se decepcionar, mesmo que não gostemos de ver planos que criamos ser despedaçados. Mas acho que faz parte da vida, também, planejar para o amanhã o que é sempre incerto e que, mesmo sabendo que pode dar tudo errado, ainda assim o fazemos. Precisamos de tempo. E quem tem tempo hoje em dia? O tempo é o único para curar as mágoas ou mesmo as feridas físicas, como meu machucado. Mas, nesse mar de não ter tempo, vamos levando a vida, sem pensar nela. Vamos seguindo a maré, sem medo de morrer com uma grande onda. Não existe tempo mais para pensar e nem para cicatrizar uma ferida e uma mágoa se curar.

Assim, mesmo com o machucado à mostra, eu logo queria calçar o tênis. Esperei ansiosamente e impacientemente para sua cicatrização. Não temos mais tempo de ficar tristes, porque a tristeza nos torna impassíveis. Sentimos, sempre, que precisamos calçar o tênis, mesmo com o pé machucado, porque senão vamos ficar atrás nessa corrida de alcançar o sucesso profissional e pessoal. Quando, finalmente, podemos dar um tempo para a bolha cicatrizar, fazemos com a vida o mesmo que faz a casquinha do machucado. A casquinha coça, ela quer sair, ela quer que o buraco do machucado, que a tristeza volte. Uns dizem que é porque a casquinha não cicatrizou o machucado direito... O problema é que, muitas vezes, na correria e na ditadura que vivemos, de sempre estarmos bem, torna-se inaceitável que alguns machucados não se curem.

Alguns machucados e suas casquinhas formam cicatrizes que permanecem com a gente ao longo de toda a vida. Em cima das cicatrizes criamos outra e, ainda, mais forte barreira de proteção, para que a vida, assim como a minha caminhada, não me causasse outro machucado. Mas criar barreiras mais fortes não iria fazer com que a gente não se machucasse. Viver a vida é colocar tudo à prova novamente. A resposta e o caminho não é não viver e não se machucar; é entender que todos são formados por cicatrizes e que nem sempre somos fortes, que nem sempre estamos certos e que nem sempre sabemos o que queremos.

Aceitar que precisamos de um tempo para criar a casquinha de nossos machucados é entender que, de vez em quando, precisamos estar off-line da vida para que, quando a gente retorne, estejamos não mais fortes, mas mais entendedores das nossas próprias cicatrizes, e não ter medo de expô-las.

Julia Castello Goulart

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