ARTICULISTAS

Uma pintura

Percebi a maneira desajeitada, tímida e silenciosa que ele chegou, passando a observar tudo em sua volta com a discrição mais intimista

Luiz Cláudio dos Reis Campos
Publicado em 19/09/2017 às 08:07Atualizado em 16/12/2022 às 10:25
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 Uma pintura

Percebi a maneira desajeitada, tímida e silenciosa que ele chegou, passando a observar tudo em sua volta com a discrição mais intimista, como se toda aquela maneira fosse estrategicamente pensada para, afinal, chamar mais atenção do que se fosse uma chegada de alarde, ruidosa e chamativa. Não, sua presença era a mais absoluta inexpressão. Apenas olhava, não falava, mas dava a impressão pelo olhar vivo, porém acanhado, de que tudo à sua volta era milimetricamente visto e registrado, nada escapava do radar que ultrapassava o campo visual de 180 graus. Que presença marcante, distante de todos, mas presente pela intensa e ostensiva imutabilidade. Uma estátua com movimentos absolutamente mínimos que lhe conferiam a reserva ideal para obter a distância pretendida com relação aos demais. Inabalável, intocável e impenetrável. Não havia, porque não despertava, ao contrário, desestimulava por sua postura, qualquer tentativa de ser provocado. Seu modo desencorajava todo tipo de aproximação e afinidade. Definitivamente parecia não se encontrar no mesmo habitat, onde todos desfrutavam do que era oferecido, e olha, quanta coisa ali para se desfrutar. Com a indiferença e frieza quase tumulares, tratava de apenas se fazer notado pela intenção, se forjada ou não, de não ser notado. Notavam-no por extrema dissintonia que se avolumava em nítido contraste a tudo e a todos que por lá estavam. Não se serviu de nada, nada utilizou ou consumiu.

Se houve algo ou alguém que lhe despertava curiosidade ou interesse, fingiu que não viu. O tempo passava e pra ele nada mudava, muitos já partiram e ele ficava, parecendo que sua hora era a hora que ali acabava. Havia uma movimentação intensa, barulho de vozes em decibéis significativos que pudessem até irritar os mais adeptos de uma prosa mais serena, mais palatável ao sabor dos ouvidos mais refinados, pouco dados a estrondosas algazarras que vez em quando afligem os tímpanos mais seletos. Mas todo o barulho, às vezes insuportável, não era capaz de provocá-lo a uma reação de rejeição. Parecia que se isolara acusticamente, ficando ileso ao som indesejado. Também a intensa luminosidade não oferecia dissabor. Olhava tudo com a tranquilidade de quem possui uma proteção intraocular capaz de não possibilitar nem mesmo uma movimentação do cenho franzido para se desvencilhar de um ou outro raio mais forte. E assim permaneceu até o fim, não deixou que se conhecesse sua voz, sua risada, seu aperto de mão, seu abraço. Foi embora sem deixar rastro algum. Tempos depois se teve a notícia de que pintara um belo quadro, um autorretrat “O jacaré na lagoa”.

Luiz Cláudio dos Reis Campos

Engenheiro

lucrc@terra. com. br

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