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O tempo...

Naquela manhã saiu de casa algo preocupado. Foi clinicar em seu consultório...

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 20/05/2017 às 21:52Atualizado em 16/12/2022 às 13:13
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Naquela manhã saiu de casa algo preocupado. Foi clinicar em seu consultório, situado onde outrora foi o mais moderno edifício comercial da cidade. Comprara ali, quando novo, uma sala em ponto estratégico. Cuidou até para não ser incomodado pelo sol da tarde. Tinha passado o tempo em que ele próprio brilhava como o sol, no exercício pleno e dinâmico da medicina. Teve reconhecimento extremo pela sociedade e seus pares em razão das exitosas intervenções cirúrgicas. Sempre foi consciente de sua responsabilidade, bem como da sua competência, que mantinha viva, atualizando-se. Mas, agora, a idade já estava avançada. Suas mãos levemente tremiam. Largou das cirurgias. O seu reconhecimento atual restava para a memória dos mais idosos. Os médicos mais novos tinham vigor e ambição que permitiam se sobrepor a ele, antes mestre de tantos. Enfim, mantinha capacidade e experiência para cuidadosamente clinicar os pacientes que lhe sobraram. Tinha amor à medicina. Pairava ainda em si o aroma, mesmo brando, daquele que fora. Porém, já agia com lentidão. A condição física e a prudência o levaram a mudar de modos. Então, conduzia cautelosamente seu automóvel no sentido que trafegava há anos. Quando foi convergir à esquerda, ouviu uma buzinada estridente de um veículo que cruzou à sua frente em alta velocidade. Não houve meio de evitar. Bateram. Aquele queria antecipar a conversão. Nisto, desceu do carro um jovem, forte e vigoroso, reclamando de sua lerdeza. A experiência o norteou para permanecer em silêncio. O jovem, gritando às cegas, pegou o telefone celular e ligou, chamando pelo pai, que não tardou a chegar. Ao se aproximar, ouviu logo do filho, acostumado à incondicional proteção do pai, que aquele velho gagá andava como uma tartaruga e teve que ultrapassá-lo, mas ele bateu em seu carro. O pai olhou para o senhor e reconheceu nele o renomado médico que há anos o atendera. Com postura e olhar reverentes, o saudou constrangido. Voltou-se para o filho e disse: "Esse Senhor é quem, em urgência, salvou sua vida, operando seu coração, quando recém-nascido". Pois é, a vida tem dessas peripécias.

(*) Juiz de Direito

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