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Sou ateu, graças a Deus

Criado no catolicismo, inteligente, aprendeu bem sobre os testamentos. Casou-se com católica...

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 21/04/2017 às 20:11Atualizado em 16/12/2022 às 13:50
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Criado no catolicismo, inteligente, aprendeu bem sobre os testamentos. Casou-se com católica fervorosa, caridosa, reta, bondosa, que rezava com vigor. Ele acreditava em Deus, mas de um modo negocial. Fazia uma caridade em troca de uma graça. Era como entendia os céus. E assim foi até que sua mulher, para si santa, adoeceu gravemente. Tinha ele certeza de que ela mereceria um milagre de cura. Afinal, ela era tão crente e tão boa. Mas o milagre não veio e ela, ainda nova, faleceu precocemente. Daí ele revoltou-se com Deus. Perguntava-se que Deus era esse que não pode acudir a filha tão bondosa. Passou a bradar contra Deus. "Que Deus que nada! Tolice ter dialogado com Deus. Ele não existe. Tudo que conquistei foi da fonte do meu esforço", repetia. E declarou alt ''Agora sou ateu". Passou a zombar de toda a escritura, de toda crença, de todo crente, de modo até cansativo pela reiteração. Usava bem da sua ciência bíblica para ilustrar as ironias e questionamentos. E nessa toada foi ficando bem idoso, sem sequer adoecer. Disso também usava para satirizar que, se Deus existia, era para estar mal, pois era ateu convicto. Ria e expressava: "Sou ateu, graças a Deus!". Mas o tempo foi passando, o seu entorno foi partindo, até que muito velho se viu no asilo só, dentre tantos, sem afeto e sem outro assunto, senão blasfemar da fé religiosa alheia. Foi cansando da vida e querendo morrer. Intimamente pensava no motivo de não morrer. Então, desconfiado, notou que não se contesta o que não existe. Acabou por reconhecer que estava crendo ao inverso, pela oposição. Entendeu que todo bem que fez ao próximo, e não foi pouco, era exercício cristão, mesmo sem religião. Percebeu que com Deus não se negocia de modo mercantil, que ganhara vida longa, ao contrário da mulher que cedo se foi, para compreender que o tempo da vida de cada um é ligado ao necessário ao aprendizado, simplesmente. Que vivia tanto porque ainda tinha o que aprender. Enfim, naquele asilo, essencialmente, o Deus que não cria é que era o preencher do seu viver. Fraco, decrépito, já beirava os cem anos, quando pediu que o levassem à capela, para surpresa de todos. Mirou o altar, como quando criança, pediu perdão, como gente grande. Enfim, cedeu e rogou a Deus para que o levasse daqui, sem nada mais ter a negociar. Poucos dias depois partiu, rumo aos céus, em paz, leve como um pássaro.

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