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Chão limpo!

Para nós, os meninos, pouco importava o nome. Para minha mãe...

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 26/02/2017 às 16:30Atualizado em 16/12/2022 às 14:57
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Para nós, os meninos, pouco importava o nome. Para minha mãe era terra vermelha. Segundo meu avô, do alto de sua sabedoria, era terra de cultura. Meu pai chamava de Terra Roxa. Tecnicamente falando, antes da nova classificação dos solos, era um latossolo, solo fértil, de cor vermelha escura, resultado da decomposição de rochas basálticas. Os estudiosos contam que os basaltos surgiram a partir de um grande derramamento vulcânico, cuja origem remonta à separação do antigo continente que deu origem à América do Sul e à África atuais. Coisas da Geologia.

Meu pai dizia que a cor roxa devia-se à presença de óxido de ferro. Ele se agachava e mostrava a nós, curiosos, o que seriam os traços do mineral na terra escura. Meu avô, com seu porte esbelto, olhos perspicazes, mirava o horizonte com uma expressão enigmática, como se tentasse prever o futuro daquela gleba. Com os pés plantados no presente, pisava a terra escura que se agarrava firme nas botinas por ocasião das chuvas.

Orgulhoso, meu pai dizia que solo assim só no Sul, em São Paulo, no Mato Grosso e no Triângulo Mineiro. Seu interesse maior estava neste último território; ele enchia a boca para falar “Triângulo”, que um dia seria um Estado do Brasil – ele nos garantia. Não era o caso da minha mãe. Sua geografia restringia-se à sala de estar e à cozinha, principalmente no fim da tarde, quando entrávamos cansados, barulhentos e displicentes casa adentro. Era um deus-nos-acuda: “Menino, cuidado com o chão limpo!”; “menino, tira a botina antes de entrar na sala!”. Os avisos vinham tarde demais, os passinhos miúdos de barro marcavam todo o trajeto até o banheiro. As roupas espalhadas e as pegadas marcando o chão encerado indicavam o caminho para o banho. Coitada da minha mãe: tarefa inglória!

Quando tinha uma oportunidade, meu pai falava sobre o solo que tanta preocupação dava à minha mãe e abalavam suas concepções de limpeza. Meu pai, preocupado com economia e a história, dizia que boa parte da riqueza do país vinha das lavouras de café plantadas em terra roxa. No rastro do café, vieram as ferrovias, as cidades e os produtos importados. Após o banho e a janta, meu avô nos confidenciava que seu maior desejo era conhecer Londrina, ícone da cultura do café no seu tempo. Prometia que iria nos levar até Foz do Iguaçu, talvez à Argentina e ao Paraguai, mas passaríamos também por Maringá. Em seguida, discorria sobre a riqueza e o progresso da região.

Um tempo atrás, não sei mais quando, aquela “sujeira danada”, que tanto trabalho deu à minha mãe, deixou de fazer sentido. Hoje, o vento carrega uma poeira fina provocando verdadeiras chuvas de terra. A magia e os ensinamentos foram pasteurizados em demasia, assim como o barro vermelho que grudava em nossos pés sonhadores.

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