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Ferramentas, artes e ofícios

Quando eu me percebi gente grande, o mundo já tinha dado muitas voltas. Quanta coisa mudou...

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 29/01/2017 às 12:40Atualizado em 16/12/2022 às 15:27
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Quando eu me percebi gente grande, o mundo já tinha dado muitas voltas. Quanta coisa mudou de lá pra cá e ainda há de continuar mudando! As mudanças sempre vão acontecer, mesmo que alguns não gostem ou não queiram.

Porque as transformações são inevitáveis. As ferramentas que eram usadas na fazenda do meu avô, por exemplo. Enxada, enxadão, foice, facão, machado... Algumas delas foram substituídas por equipamentos de alta tecnologia, rápidos e eficazes. Hoje, muitas dessas máquinas modernas funcionam movidas a energia elétrica ou a gasolina. A produtividade dobrou, triplicou... Coisa de louco, se pensarmos em como era há 40, 50 anos!

O Bastiãozinho, enquanto lá trabalhou, e foram muitos anos, roçava pasto usando uma foice de cabo bem comprido. Ele brincava conosco dizendo que o tamanho do cabo permitia que ele saísse correndo caso desse uma foiçada distraída numa caixa de marimbondos. Uma foice durava bastante, os marimbondos viviam trocando de casa. Os utensílios eram recolhidos por seus responsáveis ao final do dia, de modo a se evitar que ficassem no tempo, que molhassem, que enferrujassem ou que machucassem alguém. Ele cuidava das ferramentas como se fossem suas. Elas eram parte do seu ofício.

Foices, martelos, alicates, facões, instrumentos diversos, parafusos, porcas, arruelas, arame, e outros tantos apetrechos que permitiam que os trabalhos, consertos e remendos fossem realizados, vinham de fora, às vezes de longe. Meu avô, nos anos 1940, recebia muita coisa pela ferrovia.

Já os cabos de madeira eram retirados na própria fazenda. Recordo-me do Bastiãozinho, no fim do dia, dirigindo-se a uma mata na beira do rio e voltando com dois ou três cabos de guatambu, minuciosamente escolhidos. No dia seguinte, ele preparava o cabo, retirava a casca, queimando devagarinho, eliminando as imperfeições para garantir que estivessem retos e bem firmes. Escolhia um deles e guardava os demais. Buscava a ferramenta e colocava o cabo. Cada ferramenta tinha um tipo específico de cabo, uns menores, outros maiores e robustos, como o das marretas, ou mais finos, para os martelos. Era uma verdadeira ciência! Um dia, eu me atrevi a arranjar um cabo para uma machadinha. Errei na escolha da madeira, no peso, na forma e no conteúdo. Um fiasco!

A escolha dependia da fase da Lua, da estação do ano, da idade da árvore, da posição em relação ao Sol... Desconsiderar essa complexidade popular era errar na certa. O domínio sobre as ferramentas era de quem as usava. Cada um com seu conhecimento e sua arte.

Um dia, o tempo correu mais rápido do que de costume e começaram a chegar motosserras, ordenhadeiras mecânicas, roçadeiras a gasolina, colheitadeiras imensas, tratores ligados aos satélites pelo GPS. O antigo encanto se perdeu. O domínio sobre as artes e ofícios também. O mundo tinha mudado e muitos não perceberam. Saudades? Não, mas é preciso questionar e rever muitos conceitos.

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