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A coisa é séria

Era uma vez um sujeito muito sério. Não brincava, não ria, não descansava e tampouco relaxava...

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 15/01/2017 às 10:54Atualizado em 16/12/2022 às 15:41
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Era uma vez um sujeito muito sério. Não brincava, não ria, não descansava e tampouco relaxava. Pobre sujeito! Um dia, a vida passou e ele não percebeu. Vivia reclamando dos outros, queixando-se da falta de dinheiro, lamentando-se da crise, falando mal do governo, da família, de você, de mim e do mundo inteiro. Não gostava de ler, preferia ver TV. Não gostava de viajar, preferia ficar no boteco. Não gostava de ouvir música, preferia ficar quieto no seu canto, macambúzio. Não gostava da praia, reclamava da areia, do Sol, da água gelada ou das ondas que o desequilibravam. Não gostava da oposição, preferia os conservadores; detestava a esquerda. Criticava os jovens cabeludos, os que se tatuavam, os que gostavam de se beijar pelas esquinas, odiava os abraços e os beijos. Um horror! Os beijos? Não, o birrento, o mal-humorado! Pedia que não o incomodassem. Continuaria intratável e zangado para o resto da vida. Numa palavra: um sujeito triste.

O povo diz que pra tudo quanto há tem um jeito. Não há mal que dure pra sempre, nem bem que não se acabe. Ou será o contrário? Não importa! Um dia o sujeito ranzinza teria de mudar de vida, teria de ver o mundo com outros olhos. Os conhecidos aconselhavam uma mudança de postura, de atitude. Qual o quê! Sugeriram que ele participasse de competições esportivas. Sugeriram que fosse dançar numa gafieira, que fosse ao cinema, ou frequentasse algum clube. Nada disso! Os mais inconformados sugeriram que ele entrasse num concurso de tocar guitarra sem guitarra. Não quis. Ficou irritad “Tocar guitarra sem instrumento algum! Tá louco?” A imaginação era perigosa, a curtição era para os inconsequentes, para os irresponsáveis, ele dizia.

Um dia, ele começou a encolher, a diminuir de tamanho. Não era efeito natural da velhice, mas um fenômeno diferente, exótico. Começou com o encolhimento das pernas. Já que ele não gostava de passear, nem de viajar, não ligou. Conformou-se. Comprou calças menores numa liquidação. Depois, foram os braços. Incomodava um tanto, mas ele justificava: “Eu não toco guitarra.” Depois foi a visão. Já que não gostava de ler, muito menos de livros, de apreciar quadros, de ver o pôr do Sol, não se importou. Sequer foi ao oculista. Pra quê?

A sua vida, que já era chata, tornou-se insuportável. O problema é que achava que com os outros, com os parentes, os amigos e os conhecidos acontecia o mesmo. Ele não se enxergava e nem ao redor.

Eu tentei falar com ele, explicar que o mundo mudava sempre, e que ia continuar mudando. Não deu bola. Convidei para um passeio, para uma viagem, sugeri leituras. Não resolveu. No último domingo, estava na frente da TV quando desapareceu, sumiu. Foi engolido pelo sistema, virou poeira, como tudo será um dia. Foi varrido da história. Uns sabem disso, outros não. Você sabe? Cuidado!

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