ARTICULISTAS

A cidade do passado

Quando eu tinha 13 anos, achava que a cidade era um grande quintal, um quintal agradável...

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 18/12/2016 às 11:36Atualizado em 16/12/2022 às 02:38
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Quando eu tinha 13 anos, achava que a cidade era um grande quintal, um quintal agradável, cheio de praças e de árvores. Um quintal amplo e acolhedor. Com essa idade, eu já sabia percorrer diversos roteiros na cidade. De casa para o colégio, para a casa dos meus avós, para as casas dos amigos, para a praça da matriz, e assim por diante. Era possível identificar os bairros, o começo e o fim das avenidas, os diversos estabelecimentos comerciais onde eu pudesse adquirir uma revista de quadrinhos ou um refrigerante, os cinemas, a livraria, o teatro, os campinhos de jogar bola... À noite, a minha rua – nós a chamávamos assim – virava um grande parque de diversões. “Nós” era o grupo de meninas e meninos que morava na vizinhança e se reunia à noite para conversar, namorar e brincar. Às vezes, aconteciam desentendimentos, nada que durasse pra sempre.

Existiam poucos carros, e eles eram comportados, pelo menos no centro. Não me recordo de acidentes graves, a não ser nas rodovias que cruzavam a cidade. Foi num desses acidentes trágicos que faleceram meus avós paternos. Foi uma verdadeira comoção, notícia de primeira página no jornal.

Meninos geralmente tinham bicicletas e, com elas, explorávamos a cidade toda e as cercanias, indo até mais longe, em aventuras por estradas vicinais, de terra, que davam acesso às propriedades rurais. Apesar da ocorrência de furtos, ninguém se preocupava tanto com correntes, trancas e cadeados.

A segregação espacial já existia – sempre existiu –, mas isso não impedia os deslocamentos, não atrapalhava a apropriação da cidade. No centro ou na periferia, aconteciam manifestações culturais que delineavam antropologias.

Um pouco mais velho, um ano ou dois adiante, a atividade preferida resumia-se aos encontros com os amigos. Escolhíamos uma praça onde pudéssemos ficar sem incomodar ninguém e nem sermos incomodados. Geralmente, chegávamos por volta de nove horas da noite, quando a cidade adormecia, o silêncio acalmava os ânimos e a noite permitia um quase anonimato. Falávamos sobre música, cinema, atrizes, atores e diretores; vez ou outra a conversa girava em torno de literatura, de autores e de obras literárias. Quase sempre divagávamos sobre a política e o contexto da época. Os anos 1970 e suas tristonhas perspectivas nos deixavam apreensivos quanto ao futuro. O que fazer?

Por volta de dez ou onze horas da noite, nos dispersávamos, cada qual para sua casa. Dois ou três ficavam até tarde, madrugada afora, acompanhados de um violão, discutindo os temas de sempre. A cidade era nossa!

Com o passar do tempo, as desigualdades se acentuaram, a periferia inchou, os serviços urbanos deixaram de ser prioridade e passaram a ser apenas mercadorias, a cidade se adensou e deixou de ser acolhedora. O tempo e o espaço largaram o passado para trás. Foi a cidade que mudou ou fomos nós?

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