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É Direito meu

Já estava quieto, envolvido em seus trapos, perto de um foguinho de restos de caixas de madeira...

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 22/10/2016 às 19:03Atualizado em 16/12/2022 às 16:55
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Já estava quieto, envolvido em seus trapos, perto de um foguinho de restos de caixas de madeira abandonadas, tranquilo, embora fizesse frio. Observava, desatento, os carros passando, luzes cruzando, piscando no vazio de dentro da sua cabeça, em meio a um movimento intenso ao seu entorno. Já estava para retomar mais um cochilo daquele dia que não foi curto, nem longo, dia que passou como quis, até que veio aquela noite do frio, quando dele se aproximou uma alma boa. Era uma pessoa dócil. Vieram mais outras duas, que levaram pra ele uma sopa quente. Tomou e até gostou. Já estava mesmo a invernar o tempo, embora nem estivesse com fome, pois já havia se alimentado o suficiente com o produto da esmola e do desperdício das pessoas. Comeu mais para não ter que contestar a oferta. Aliás, escolhera aquela vida exatamente para não ter que se envolver nas controvérsias e incoerências da sociedade. Olhava e ouvia sem nada dizer. Tinha um olhar vago, mas profundo, com algo de filosófico. Não era triste nem alegre. Estava contente em viver assim, sem horários, regras, padrões. Sua família eram seus pares, bastava-lhe.  

No dia seguinte, à mesma hora, vieram as pessoas, outra vez. Então, tanto insistiram que o levaram para o albergue. Forçaram-no a um banho, deram-lhe uma cama, recolheram seus trapos queridos pelo costume. Mas, pela manhã, bem cedo, ganhou o mundo. Buscou outro ponto para não ser amolado. Aquelas almas eram boas, mas falavam muito, especulavam, faziam propostas. Queria paz. Reencontrou a paz em outro ponto até que, certa feita, apareceram de novo aquelas almas boas. E vieram com o mesmo propósito. Já aí, enfadado daquilo, resolveu falar pela primeira vez. 

Disse entã – Procurem outro para cumprir a caridosa missão de vocês. Desculpem, mas não me atormentem mais. Quero viver assim, quero ser mendigo, quero paz, se é que podem entender. Tenho outros valores. É direito meu, respeitem. Além disso, assinalou: – Cristo disse que habitaria em nós, os pobres. Virou-se e dormiu, assim, ao léu.

(*) Juiz de Direito

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