ARTICULISTAS

Constituir-se na dor para existir

Falar em dor numa época de prazer a qualquer preço pode parecer estranho, talvez intrigante e, no mínimo, excludente...

Ilcéa Borba Marquez
Publicado em 31/08/2016 às 08:38Atualizado em 16/12/2022 às 17:30
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Falar em dor numa época de prazer a qualquer preço pode parecer estranho, talvez intrigante e, no mínimo, excludente. Assim talvez este simples título possa impedir a leitura de alguns, mas também pode despertar a curiosidade de outros que se sentem perplexos diante do próprio sofrimento e de muitos que, sem nenhum dano físico aparente, desistem da vida e do viver, tornando-se apáticos, fatigados, displicentes com sua própria aparência, sem fome e insones, fugindo dos contatos sociais e do sentir amor, e por outro lado mergulhados numa culpa lancinante.

Os depoimentos impressionam e quando nos relatam sua história pregressa pessoal existem situações reais e singulares de sofrimento como sequestro paterno ou solidão sistemática. Uma foi sequestrada e mantida em cárcere privado durante toda a sua primeira infância, outra experimentou perdas e separações ruidosas que abriram feridas sangrentas, representando um vazio de morte no próprio mundo interno. Os que estão próximos ou são informados sobre os históricos questionam sobre a materialidade: por que isto, você é tão nova e bonita, tem uma vida pela frente!... Nada adianta, nada aplaca o sofrimento revelado na desilusão e apatia. Precisamos compreender para ajudar.

O narcisismo é fundante da existência da seguinte forma: os pais ao olharem seu filho o investem com o próprio narcisismo perdido – pois já viveram muitas faltas – e daí o psiquismo do infante se organiza em torno da fantasia de onipotência: eu sou tudo e tudo posso (narcisismo e onipotência). A expressão “sua majestade o bebê” caracteriza a hiperidealização parental sobre a criança, fundando, ali mesmo, um discurso que produzirá efeitos perenes na subjetividade da criança. Esta fantasia de onipotência tem por objetivo rechaçar a impermanência, a falta e a finitude, ou seja, o impossível, porque a falta, a perda e a morte se impõem em toda e qualquer existência.

Podemos dizer que o luto é uma depressão temporária. Aquele significa uma parada, uma inibição da atividade do eu passageira e necessária a uma recomposição da capacidade de investir num novo amor. O enlutado se mantém temporariamente num estado de rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou a perda cujos efeitos se fazem valer pela possibilidade de finitização da dor. Os dias atuais que preconizam acima de tudo o prazer aqui e agora denegam ao mesmo tempo a perspectiva do vir a ser – a temporalidade mesma – que é ao mesmo tempo a única saída para o luto. Vemos na incidência crescente dos estados depressivos uma relação com o imediatismo atual que dificulta a solução encontrada na perspectiva do futuro, do amanhã, do vir a ser.

Ilcea Borba Marquez

psicóloga e psicanalista

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