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O sono eterno

Com o Sol já se pondo, recebi a notícia do falecimento de um amigo. Desapontado, lamentei...

João Eurípedes Sabino
Publicado em 05/08/2016 às 19:20Atualizado em 16/12/2022 às 17:52
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Com o Sol já se pondo, recebi a notícia do falecimento de um amigo. Desapontado, lamentei a grande perda e procurei me inteirar quanto ao fato, a fim de participar do velório, que, como é de costume, deveria ocorrer naquela noite.

Sabendo que poucos têm disponibilidade para participar de um velório noturno, programei meu tempo para passar com aquele amigo parte das suas últimas horas no mundo físico. Das onze da noite às três da madrugada, pelo menos, eu aguentaria ficar, sem nenhum problema. Rumei-me para a funerária.

Chegando devagar, pensei que algo estranho pudesse estar acontecendo ali. Nenhum visitante presente e três funcionários conversavam na sala de recepção. Matutei que o meu amigo não mais estivesse ali por ter sido transferido para outra localidade, a fim de ser sepultado.

Grande engano. Ele estava presente e jazia em seu caixão sem que nenhum ser vivente estivesse em sua companhia. Informaram-me os agentes da funerária que a família enlutada e os amigos foram aconselhados a se retirar por questões de segurança. Vi isso em São Paulo, há dez anos, e achei estranho.

Pedi permissão para visitar aquele destemido homem e, à sua cabeceira, fiz várias reflexões. Dentre elas a de que o crime venceu o Estado, tanto que os nossos mortos se obrigam a ficar sozinhos, sob pena de atrair arrastões para seus visitantes. Era só o que faltava: a cidade que um dia instituiu o Culto da Saudade hoje se iguala aos grandes centros. Por livre iniciativa, familiares não deixariam seus mortos numa funerária e voltariam no dia seguinte.

Coroas de flores contrastavam com a tristeza do ambiente e luzes acesas me permitiram ler belas mensagens. Lembrei que, se 1% (um por cento) dos ofertantes estivessem presentes, meu amigo não estaria tão só. Realista como era, parecia estar me dizend “Esta é a vida, meu amigo João. E esta é a morte”.

Está ameaçado o nosso costume de tentarmos dividir a dor dos que perdem um ente querido. Passar a noite “fazendo quarto”, no dizer dos antigos, constará apenas da nossa memória. Velórios trancados, mortos sozinhos, familiares e amigos afugentados(!?!). E bandidos soltos.

Deambulando pelo local, recordei-me de ter falado àquele amigo, certa vez, que: “Deus criou a morte em mais um de seus atos de sabedoria; quem a exerce nada assiste, apesar de participar de tudo”. E ainda: “A morte só existe para aquele que acredita na separação para sempre”.

Meu amigo, festejado em vida, deitado em caixão modesto e sendo o protagonista principal daquele evento, não deve ter estranhado que sua última noite aqui teve um ingrediente especial: iniciou sozinho o sono eterno.

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