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Mariquinha, suas aventuras e desventuras

Aquela notícia triste entrou em minha casa pelo telefone: a Mariquinha Penido foi atropelada...

Padre Prata
Publicado em 17/07/2016 às 10:45Atualizado em 16/12/2022 às 18:05
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Aquela notícia triste entrou em minha casa pelo telefone: a Mariquinha Penido foi atropelada. Creio que ninguém ou quase ninguém se lembra mais dela. Seus pais e irmãos já se foram há tempos. Não sei se tinha sobrinhos. Sua história, aparentemente, nunca teve importância nenhuma, como não tem importância a história daqueles que, em tempos idos, trabalhavam anonimamente nas antigas fazendas. Mariquinha foi minha colega de escola. Na roça. Era um pouco mais velha, mas brincávamos juntos, ela e eu, lá pelos meus dez anos, dizia que era minha namorada. Seu pai, o José Penido era doente, um amarelão de assustar. Diziam que era opilado. A mãe, Sá Maria, era morena, alta e tinha um imenso caroço no braço que muito me assustava. Suas filhas eram todas bonitas e disputadas pela peonada da redondeza. Um deles conseguiu casar-se com a Mariquinha, o curiboca mais feio dentro das cinco léguas quadradas da região. Feio e raquítico. Chamava-se Joaquim Dunga. Magricela, dentuço e preguiçoso. Além disso, era emburrado e resmungão. Não sei o que a Mariquinha viu nele. O que todo mundo esperava aconteceu. Mariquinha deu no pé e veio morar na cidade, onde passou a criar a filha Soledade. Foi arrumadeira, passadeira, lavadeira, fez de tudo. Quanto à Soledade, já mais crescidinha, mudou-se para São Paulo como babá de uma família que conseguiu não sei como. Foi lá que conheceu um americano e foi morar com ele. Se houve casamento ou não, ignoro. Esses pormenores me foram ocultados. O certo é que se mandaram para os Estados Unidos, de cama e cuia.

Tempos mais tarde, vieram buscar a Mariquinha. Semianalfabeta, conversava na base do nós vai, pramorde, dexovê e por aí afora. Não importa, o certo é que subiu de status e sumiu de vista. Foi morar em Boston, USA.

Uns dez anos depois, entro em casa de minha mãe e encontro uma senhora muito bem vestida e melhor penteada num papo animado. Levei tempo para reconhecer a Mariquinha. Sim, era ela. Não falava uma palavra em inglês. Quanto ao português, ficou naquele mesmo. Contou-me como veio a Uberaba: “Tomei um licope em Bosto e fui até Neviorque, lá subi num eroplano e vim pra cá. Eles me dero um papel escrito, eu vim mostrano e eles me ajudava.”

Pois bem, ali estava a Mariquinha do “nós vai”, toda bonitona e perfumada, com anéis e brincos caros. A vida é assim. Se tivesse aprendido as regras da gramática, provavelmente estaria lambendo embira numa escolinha lá da roça.

Agora vem a notícia triste: foi atropelada por um ônibus. Não sabia ler: Stop! A Mariquinha de tantas aventuras morreu prosaicamente debaixo das rodas de um ônibus americano. Não só de memórias alegres nos lembramos de nossa infância.

Imagino Mariquinha olhando, amedrontada, as barbas de São Pedr “May I come in?” “Deixe de bobagem, Mariquinha, fale naquela língua lá da roça, naquela língua gostosa que nós entende...”

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