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A família invisível

Às vezes a realidade é tão dura que fingimos não enxergar o que acontece além dos muros de nossas casas...

Julia Castello Goulart
Publicado em 23/05/2016 às 07:59Atualizado em 16/12/2022 às 18:47
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Às vezes a realidade é tão dura que fingimos não enxergar o que acontece além dos muros de nossas casas. Entretanto, eu conheci uma família nas ruas de São Paulo. Queria encontrar uma família diferente da minha para fazer um trabalho para a faculdade. Mas eu encontrei muito mais do eu procurava. Pela primeira vez, vi o que muitas pessoas passam todos os dias ou quase uma vida inteira sem enxergar. Eu vi uma família, ao mesmo tempo, muito diferente da minha, pela situação em que se encontrava, e muito parecida também. Eles tinham nomes, ideias e sonhos, mesmo que nem sempre sejam tratados ou vistos como pessoas. As crianças são como todas as crianças que brincam e têm medos, mesmo que tenham de ajudar os pais no trabalho.

Essa família é a de Vânia e Paulinho e os sete filhos. Uma família que vive com uma carroça à procura de latinhas, papelão, cobre, para vender no fim do dia. É uma família de carroceiros que vivem em uma pequena casa de tijolos em uma favela de São Paulo. Mas não sabem quanto tempo estarão ali, pois a prefeitura iria tirar deles a casa. Ela iria tirar tudo que tinham... Mas, para onde iriam? O menino andava na sua bicicleta e brigava com o outro pra ver quem ficava mais tempo com ela. A menina se encantou com um gatinho de pelúcia de olhos cor de rosa que eu dei a ela. Ela logo deu um nome e prometeu a mim que cuidaria dele pra sempre.

A menina mais nova, de quatro anos, apaixonou-se por mim e eu por ela. Ela passou o dia todo em que estive com a família segurando a minha mão. Outro menino perguntou ao pai, quando um carro grande passou perto de nós, se aquele carro era o carro que pegava crianças. Sorri sem entender e perguntei do que se tratava. O pai me respondeu que era o carro da assistência social que tinha pegado os filhos de uma vizinha deles. O menino mais velho sentou perto de uma padaria pela qual passamos. O guarda, na porta, disse que ele não poderia ficar ali. Ele respondeu que só estava com fome. O guarda, mais uma vez, pediu que ele saísse, mas o menino continuou sentado. O guarda abaixou o tom de voz e disse a ele que, se não saísse dali, iria chamar a polícia e falar que ele tinha roubado. Paulinho quis defender o filho, mas desistiu para não complicar a situação.

No fim do dia, eu já estava cansada, com fome e com frio. E, pela primeira vez, senti o que é ser olhada por pessoas que te julgam, que te olham com superioridade. Vi pessoas que tampam o nariz, atravessam a rua para não passar perto dessa família, que ainda por volta das sete da noite continuaria procurando latinha e papelão. Eles me agradeceram pelo dia, pelos salgados, pelos brinquedos, mas o mais importante, por ter ouvido a história deles. Só depois percebi que eu que deveria agradecer. Pela primeira vez, eu tive a oportunidade de enxergar o que todas as pessoas fingiam não ver e me perguntei por onde estive olhando por tanto tempo. Mas, naquele dia, eu tive certeza, nunca mais me esqueceria daquela família...

Julia Castello Goulart

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