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Tempo, tempo...

Meu avô era rigoroso com horário. Outros tempos! Se quiséssemos acompanhá-lo...

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 27/03/2016 às 11:13Atualizado em 16/12/2022 às 19:33
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Meu avô era rigoroso com horário. Outros tempos! Se quiséssemos acompanhá-lo, nada de atrasos. Nos anos 1960, anos preguiçosos, os meninos não tinham pressa, alguns jovens e os adultos sim. Tinham motivos para tanto. Uns precisavam impedir o retrocesso na política, outros precisavam correr atrás do prejuízo, pois o tempo apenas começava a se acelerar.

Meninos não tinham preocupações, ainda mais nas cidades pequenas. As férias duravam mais de três meses, os fins de semana eram longos e calmos, sem TV, sem tantas festas, mas com muitas opções de lazer ao ar livre. Nas férias de verão, as famílias que tinham condições levavam os filhos para Santos, para a praia. Os que ficavam na cidade, enchiam os campinhos para jogar bola, andavam de bicicleta, iam ao cinema.

Nós íamos à fazenda do meu avô. Trabalho em fazenda não tem folga, vacas não descansam nos fins de semana e lavouras têm tempo certo para serem cultivadas. Por seu turno, chuvas, vento e calor não marcam hora, intempéries não têm agenda de compromissos. Já os fatos e fenômenos da natureza humana eram marcados, quantificados, enquadrados. O almoço, por exemplo, era às onze horas, em ponto! Hora de levantar era bem cedo, e sem tempo ruim, estivesse fazendo frio, chovendo ou geando.

Num feriado da Semana Santa fomos à fazenda. Arrumamos a tralha: baralho, maleta de pesca e alguns livros bem escolhidos, não nos esquecendo do calção de banho para nadar nos poços de águas claras do rio que passava nos fundos do quintal. Lá fomos nós!

Segunda, terça, quarta, tudo certo, tudo conforme o previsto. Na quinta-feira, saímos cedo e fomos mais longe do que o costume. Ao chegarmos, quase onze e meia, encontramos a Dona Auristela, que cuidava da cozinha, muito preocupada, quase perdendo o rumo e o prumo. É que ela gostava de passar os bifes na hora em que chegássemos, e a quinta-feira já era “santa” na tradição vigente, portanto nada de carne.

Na nossa displicência de adolescentes, não deixamos instruções sobre o cardápio. A outra grande preocupação dela era manter o horário estipulado por meu avô, mesmo em sua ausência.

Ela estava numa enrascada, pois não tinha preparado os bifes, preocupada em não desrespeitar o dia santo. Nossa decepção foi grande; comer macarrão puro? Aí o meu irmão mais novo surgiu com uma solução mágica: “pode comer carne antes do meio dia, o dia santo só começa ao meio dia! A senhora não sabia?” Ela respirou aliviada e correu para a frigideira. Os bifes ficaram prontos a tempo. A tradição tinha sido respeitada, a comida estava servida.

Naquele feriado, aprendemos que com tradição e com horários não se brinca. A não ser que a gente inventasse novas regras e quebrasse as tradições; estávamos nos preparando para isso. Os tempos que vieram a seguir nos mostraram, a duras penas, quantas normas e tradições tiveram de ser quebradas. O mundo estava mudando.

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