ARTICULISTAS

O PORQUÊ DA MOCINHA TRISTE

Quase não mais me lembrava da mocinha triste de olhos fincados ao chão

Manoel Therezo
Publicado em 07/03/2016 às 08:18Atualizado em 16/12/2022 às 19:49
Compartilhar

 

O PORQUÊ DA MOCINHA TRISTE (Um acontecimento real)

Quase não mais me lembrava da mocinha triste de olhos fincados ao chão. Pela manhã, duas jovens criaturas estiveram em meu consultório. Uma muito falante e a outra, um tanto calada. Disseram-me que tiveram notícias de que eu estava precisando de uma auxiliar. Após rápidos entendimentos, a mais calada era a que viria trabalhar.

A mais falante me pareceu ser a que resolvia tudo. No dia seguinte, ao passar de longe pelo consultório, lá estava a mocinha calada numa trabalhosa faxina. Fui para a aula na Faculdade. De volta, ela sem nenhuma prosa e de olhos afundados ao solo, apenas me respondeu os cumprimentos. Logo percebi ser uma criatura quieta. Acertamos o quanto receberia. Sempre calada e distante, apenas se aproximava quando solicitada. Aquela quietude lhe dava um “Que” de estranho, que acabei por lhe perguntar, o porquê daquele comportamento? De sua resposta, nada me recordo. Trabalhou comigo por algum tempo.

Fui notando que se tratava de uma criatura séria – apenas taciturna; incapaz de um procedimento que lhe desmerecesse a confiança que passei a lhe depositar, lhe encarregando de fazer para mim, certos pagamentos – dentre eles, o do aluguel do consultório. Nunca lhe perguntei pelos recibos de nada. Decorrido algum tempo, recebi uma solicitação para comparecer a um escritório advocatício. Lá estive, quando me foi exposta a determinação de despejo por falta de pagamentos do aluguel.

Estarrecido com que ouvia, após explicações, fiz a quitação prorrogando a ocupação do cômodo. Nada falei com a mocinha. Passei a não mais lhe confiar os pagamentos. Era pontual. Cuidava com esmero da limpeza do consultório – era o importante. Aos sábados, fechava o portão do alpendre que antecedia a sala de entrada e se punha ao trabalho. Num deles, estando aberto o portão, adentrei naquele consultório todo em espuma de sabão. Surpreendentemente, a mocinha descalça não tendo como esconder os seus dois pés, com seis dedos em cada um, correu desesperada a se esconder dos meus olhos. Encavalados por força dos calçados, vi aqueles dedos uns sobre os outros montando uma feiura realmente. Fingi não os haver visto. Mas, depois daquele sábado, a mocinha não mais voltou.

Anos e anos decorridos, uma senhora já idosa, perguntou-me se eu era aquele dentista onde a sua amiga (falou o seu nome), trabalhou por algum tempo? – Sim, lhe respondi. – O senhor sabe a razão dela não mais haver voltado? – Não faço ideia. – Porque o senhor viu os seus seis dedos em cada pé. Aquilo lhe fazia entristecida. Um derrame deixou sua mãe paraplégica. Quando ela trabalhava com o senhor, comprou-lhe uma cadeira de rodas. Logo me lembrei do aluguel sem incriminá-la... Ambas eram demais pobres e moravam numa casinha no fundo do quintal de uma casa. Sua mãe faleceu. Depois meu senhor, sozinha, sem renda, perdeu o equilíbrio e amanheceu morta.

Cortou os pulsos. Não contendo as lágrimas, se aquietou e se foi. Também segui pensand Errei por não me anunciar. Que pena... Se tivesse voltado, com certeza lhe teria conseguido uma forma de se livrar daqueles seis dedos, como tantas criaturas hoje com outras feiuras em seus pés, cirurgicamente estão se livrando como nos tem mostrado a TV. Coitada... Se tudo for como lemos, que ela encontre paz pela forma como se tirou da vida. Certamente, o Criador compreenderá a sua razão.

Manoel Therezo

Professor “Emérito” da Fac. de Odonto. - Ex-Vice Diretor das Faculdades Integradas de Uberaba – FIUBE – portaria 5/76. [email protected]

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por