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Lembranças

Recordando-se tanto das alegrias da infância, resolveu, já depois de tantos anos, retornar...

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 30/01/2016 às 10:05Atualizado em 16/12/2022 às 20:17
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Recordando-se tanto das alegrias da infância, resolveu, já depois de tantos anos, retornar à casa da fazenda onde vivera o semear de seus maiores sonhos. Lá onde seus principais heróis surgiram, seus ídolos reais. Ali onde tudo parecia tão definitivo na glória, no prazer, na proteção e na amizade. Até onde vigorava o aconchego familiar. Broncas, carinhos, conselhos e bons exemplos de caráter, de postura, de disposição. União com muita alegria. 

Tomou seu carro, avisou a tia, viúva do tio modelo, e para lá partiu, na esperança de absorver daquele clima, daquele lugar, o tempo em que tudo tinha a beleza inocente de seu olhar infantil. De tudo foi feito para que tivesse uma boa recepção. Mas somente o zelo da anfitriã era tal qual outrora. De plano, a casa parecia menor, não mais guardava aquele mesmo vigor. Já a cerca, que era rica em madeira, trazia as marcas atuais diferentes da pujança daquele tempo. O arame era mais marcante que a sequência paralela de aroeiras. Não havia agora a alegria da esperança. Afinal, quando somos crianças, não temos passado a olhar; quando idosos, como a tia de agora, não temos futuro a sonhar. Na meia-idade há que se temperar a vida enquanto há algum projeto a mirar.

Foi à cachoeira. O local mais divertido, fora as brincadeiras noturnas após o jantar. Ao dela se aproximar, não sentia mais a emoção daquele frio na barriga, daquele medo de se afogar. Ela também lhe pareceu menor, sem muito efeito o seu borbulho a soar. Sentou-se. Fechou os olhos, começou a conjugar seus sentimentos. Entendeu que não bastaria o mesmo cenário para o drama se passar. Não haveria mais os artistas daqueles personagens reais, que tanta felicidade outrora faziam minar. A vida daquele tempo só existiria viva enquanto um coração pujante ainda dela se recordasse. Não adiantaria apostar no lugar, nos móveis, nas construções, se ali não mais havia vibrações do amor que escreveu e fez mover a vida viva daquele tempo, naquele espaço que se tornou apenas o cenário do filme da vida que se passou. Resolveu ali não mais voltar, senão em lembranças, somente estas é que quis guardar, pois em seu coração é que poderia levar a alma viva invisível daqueles e daquele tempo. Abriu seus olhos e suspirou. Sorriu discreto para si e retornou ao hoje, essência do viver.

Ricardo Cavalcante Motta

Juiz de Direito

Ricardo Cavalcante escreve

quinzenalmente neste espaço

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