ARTICULISTAS

Remorso

Na vida, as pessoas muitas vezes vão agindo pelo impulso, sem aferir antes seu verdadeiro sentir

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 25/07/2015 às 19:00Atualizado em 16/12/2022 às 23:08
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Na vida, as pessoas muitas vezes vão agindo pelo impulso, sem aferir antes seu verdadeiro sentir, seu verdadeiro sentido, sua busca espiritual. Fazem por fazer, para depois pensar. Daí decorre que no resultado do ato impensado, impulso de algum orgulho, arrogância, vaidade, ou mera inconsequência imediata, padecem após a dor pelo resultado de ato não realmente abrigado em si, em seu coração. Vem o remorso.

Vejo isso recorrente no dia a dia laboral.

Certa feita, numa ocasião festiva no fundo de uma casa de família, por razões banais, dois irmãos acabaram por se desentender, resultando o entrevero numa briga pueril. Como havia um churrasco, um deles lançou mão, sem refletir, de um espeto que estava ao seu alcance e o apontou para o irmão adversário. A ponta do instrumento feriu o irmão e, por imenso azar, o ferimento causou a morte do irmão. Foi a notícia que veio logo depois do hospital, quando já retomando a razão o ofensor soube do resultado de seu ato.

Não é preciso dizer do remorso do irmão ofensor. Afinal, eram de fato amigos, não havia razão odiosa real que nutrisse vontade de eliminar o outro. Sua alma tomou-se da inquietação da consciência pelo crime praticado. Era o que havia no processo. Foi denunciado por homicídio.

Seguindo os trâmites da lei, restou ser levado a julgamento pelo Egrégio Tribunal do Júri Popular. Esse tribunal, por ser soberano, assim por força da lei constitucional, pode deliberar o seu veredicto sem fundamentar seus motivos. Julga pelo sentir da Justiça social do local. O acusado era réu confesso.

Diante dos julgadores, compareceu a massacrada mãe, certamente tomada da tristeza maior que todos.

Com os olhos rasos d’água, postulou emocionada aos Senhores Jurados pela absolvição de seu filho, aquele que estava sendo julgado pela morte do irmão de que teve a infelicidade de, num ato de desatino, atingir no peito, quando acidentalmente causou sua morte. Sustentava que não o fez por intenção. Que sua dor de mãe somente seria agravada em sendo este seu filho condenado, vez um já fora para o plano de Deus e que o outro seria levado à masmorra. Que seu coração de mãe sabia que não matara o irmão por maldade, que o desentendimento doméstico não tinha jamais dimensão de homicídio, que a morte ocorrera por um extremo capricho do destino. E seu coração de mãe não estava equivocado.

Resultado do julgamento. O réu foi absolvido, atendendo os jurados ao clamor da mãe sofrida.

Recurso. Determinado pelo Tribunal novo julgamento, por entender que a decisão contrariava a prova dos autos. Como o Tribunal não pode modificar a decisão do Júri, resta apenas mandar a novo julgamento.

E, pelas nuances do processo, mais duas vezes o réu, irmão ofensor, foi julgado.

A infeliz mãe em todas as vezes compareceu e repetiu o seu discurso, para os outros jurados, vez que não se pode repetir os jurados no mesmo caso.

Todas as vezes, os jurados acataram o clamor da mãe. Restou, enfim, livre da acusação o réu. Absolvido pelo Estado.

Contudo, não se fez absolvido por sua própria consciência.

Chegou-me a lamentável notícia. O irmão ofensor havia se suicidado.

Pensei imediatamente na redobrada dor daquela miserável mãe. Perdera os dois filhos e ainda lhe restaria a dúvida de que, se não tivesse interferido diretamente, talvez cumprindo a pena, o remorso do ofensor pudesse ser aliviado.

Concretamente o que não conseguira o filho sobrevivente foi explicar a si mesmo o efeito de seu gesto impensado. O suicídio foi o modo extremo de confessar seu amor ao irmão. De firmar o seu arrependimento. De enfrentar o remorso.

Pois é, meus prezados. Ter cuidado com os atos é sempre medida relevante, especialmente quando nos vemos em confronto bélico com nossos entes queridos, amados, estimados, companheiros dessa breve vida. Relevar, dialogar, esperar outro momento para levar o assunto a bom termo é por demais valioso. Às vezes, os defeitos que temos e que dos outros vemos existem não para ofensas rigorosas, mas para ponderações. Afinal, estamos próximos para ajudar e sermos ajudados, compreender e sermos compreendidos. Não adianta simplesmente cobrar a perfeição ou imaginar externá-la. Perfeição aqui neste plano não há. 

Excesso de proteção também pode não ser sadio, não permite robustecer a força interna necessária para o desenvolvimento pessoal, moral e espiritual.

Portanto, sendo todos nós imperfeitos, fiquemos atentos.

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