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Entardecer

Eu tinha uma tia que não gostava do entardecer na fazenda. Era só aproximar-se o fim da tarde

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 19/07/2015 às 12:39Atualizado em 16/12/2022 às 03:23
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Eu tinha uma tia que não gostava do entardecer na fazenda. Era só aproximar-se o fim da tarde e ela já queria ir embora, voltar para a cidade. O motivo, segundo ela, era que não gostava do fim da tarde. Anos depois, acho que entendi suas razões.

Fazenda, nos anos 1960 e no interior de Minas Gerais, tinha muitos significados. Era um lugar de trabalho, de produção, como são as propriedades rurais, mas era também lugar de moradia, onde relações fortes de poder se estabeleciam, local de afinidades sociais nem sempre harmoniosas e explícitas, de descobertas da infância, de nascimentos, envelhecimentos e mortes, fazendo parte de um ciclo que parecia natural. Era lugar de avistar, vivenciar e tentar decifrar as manifestações da natureza, algumas tão belas, outras terríveis, dependendo do ponto de vista.

Minha família era grande, composta por avós, tios, primos, pais e irmãos. Os grupos sociais com os quais convivíamos também tinham características semelhantes. De perto, bem de pertinho é que se acentuavam as diferenças. O mais velho, o mais forte, o mais destemido, o mais azarado, o falante, o que gostava de contar vantagens, o primeiro a chegar, o último a sair, o trabalhador, o esperto, o preguiçoso e tantos temperamentos que expressavam as subjetividades, cada qual mais incompleta em relação à riqueza pessoal dos indivíduos e suas capacidades, sonhos e vontades.

Como cada espaço revela um território organizado por situações nem sempre fáceis de compreender, com sua lógica própria, os lugares da fazenda eram a melhor tradução das relações políticas, sociais e econômicas existentes entre os indivíduos. A casa sede, a antiga colônia dos imigrantes portugueses e italianos, a casa da farinha, o curral, o chiqueiro, o paiol, o rio, os pastos, as lavouras, formando um conjunto, que às crianças e, talvez, aos adultos também, parecia imutável e eterno. Que ilusão!

A transição, porque tudo se transforma, veio devagarinho, imperceptível, mas veio, inexorável. Tinha de vir e veio. A fazenda já não produzia tudo o que as pessoas precisavam no dia a dia. A produção dependia, cada vez mais, de insumos vindos de longe, até do estrangeiro. Os mantimentos eram comprados no armazém e, dali a pouco, nos supermercados. Era preciso trazer da cidade os gêneros, a mistura, as roupas, os medicamentos, o querosene, o baralho, os anzóis, sem esquecer as pessoas.

Os meninos cresceram, os avós se foram, as terras e o gado foram divididos e sobrou, como referência e fonte de conflitos, a casa sede. Não foi possível desfazer-se dos móveis antigos, das lembranças, das árvores do pomar, dos locais de banho no rio, então o uso foi comum durante o período de quase uma década.

Nos finais de tarde, em especial nos invernos poeirentos, o céu tingido de vermelho, reunidos na varanda, conversávamos sobre os “velhos tempos”. Minha tia se calava, o olhar distante... Agora eu sei, era melancolia.

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