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Louvor de boca própria

Embora eu lide com leis, sei que lei mesmo que vigora firme, perene e imutável

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 16/05/2015 às 19:48Atualizado em 17/12/2022 às 00:08
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Embora eu lide com leis, sei que lei mesmo que vigora firme, perene e imutável é a lei da natureza. As demais, editadas pelos homens, levam em si o espírito do interesse do poder que a editou, e que vai variando com o tempo.

Pois é. Assim fui criado. Sob o crivo de muitas normas definidas pelo todo-poderoso Pai. Aliás, pouca chance havia para questionamentos ou recursos contra uma definição paterna. Não era raro ouvir que isso não podia porque não. Somente o passar do tempo é que permitia entender o grau de valor guardado naquele não, o “porquê do porque não”. Não existia em regra explicação. Era não e ponto. Mas, de qualquer forma, sempre há uma manipulação legal pelo príncipe do poder. Nem sempre maculosa, mas surge.

Lembro-me quando li a “Revolução dos Bichos”, de George Orwell. Com sutileza mostrou-me a norma alterada pelas conveniências.

Vejam esta.

Dentre as muitas normas vigentes ao tempo da minha saudosa infância, uma delas era que jamais seria permitido o “louvor de boca própria”. Era norma de imposição severa pelo severo editor, que certamente trouxe essa regra já dos antepassados. A atitude a seria própria  de presunçoso, e sem valor algum, por partir de si mesmo. Então, certo dia, estava eu já querendo tornar-me rapaz, questionador, quando, após uma recreativa partida de futebol da qual meu pai participara, num clube social, percebo ele, meu pai, entrar na sauna a vapor, totalmente nublada. Somente pela voz era possível reconhecer o interlocutor. Quando ele chegou, lá já estava eu. Silencioso num canto, sem que ele percebesse minha presença, ouvia sua voz alegre ao se glorificar como atleta da bola. Goleador eficaz, tenaz, hábil, esperto, implacável, cruel, que fazia gols de cabeça, calcanhar, bicicleta e de todo modo. Não reconheci no mestre o cumprimento da norma que pessoalmente havia me imposto. Tomado pelo respeito, silenciei para só depois, ao retornar para casa, cometer a grave ousadia de questioná-lo, separadamente. Não fosse assim, estaria duas vezes infringindo regras.

No carro, depois de percorrido certo trecho, ouvindo-o cantarolar, como raramente, criei coragem e por fim o abordei.

– Pai, não disse sempre que louvor de boca própria é coisa abominável que devemos evitar?

Respondeu desarmado e seguramente: – Sim.

Foi quando, sentindo-me então apoiado, retruquei. Pois então o que fazia há pouco na sauna senão elogiar a si mesmo?

Tomado aí pelo golpe da armadilha, ele arranhou forte a garganta, respirou para ganhar um tempo e, como experiente advogado de júri, respondeu-me, sem perder a postura. Rapaz, já está grandinho e, portanto, poderá receber agora o resto da lição.

Anote aí na norma. Parágrafo primeiro. Essa regra vigora até os cinquenta anos. Após, poderá ser eventualmente descumprida. Pois se não for assim, após os cinquenta estará arrasado na autoestima, fadado ao inferior; e riu de modo sagaz.

Tomado pela presença de espírito da resposta imediata, também um tanto a gozar da astúcia da resposta, até engraçada, recolhi-me novamente à minha insignificância, pois, afinal, somente o tempo poderia permitir-me entender a essência da norma retificada. Portanto, aos novos, que guardem o vigor da norma. É proibido, por abominável, o louvor de boca própria. Mas aos demais, que já atingiram o requisito objetivo da exceção da norma, ou seja, já passaram dos cinquenta, que façam bom uso da permissão, procedendo algum louvor de boca própria, principalmente aquele velho “já fui bom nisso”.

Contudo, nunca se esqueçam que esta imposição legal somente e v e n t u a l m e n t e permite a digressão do caput. E, neste caso, façam-no em paz, afinal, é da regra.

Lei da vida! Simplesmente.

(*) Juiz de Direito

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