ARTICULISTAS

Uma perna, um não; dois braços, uma lição

A gente nem se apercebe dela. Às vezes sorrateira, mas quase sempre espalhafatosa

Carlos Alberto de Oliveira
Publicado em 19/04/2015 às 13:38Atualizado em 17/12/2022 às 00:30
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A gente nem se apercebe dela. Às vezes sorrateira, mas quase sempre espalhafatosa, a vida passa pelo lado esquerdo, pelo direito, rápido! E não tem jeito. Basta pôr os pés para fora de casa e dar a ela alguma tênue atenção e receberemos em troca algum ensinamento.

Eu disse pôr os pés para fora de casa? Não, nem precisa disso. Fora de casa, dentro dela, até dormindo, quem quiser, aprende.

Depois de algum tempo em que nos dedicamos a observar seus modos didáticos, pegamos o jeito. Daí para frente, pouco ou nada passa sem que notemos.

Nesse exercício, estava eu numa noite tórrida de verão em São Paulo, havia já mais de uma hora, numa interminável fila de supermercado. Em minhas mãos, eu tinha o precioso presente de Natal do meu filh uma reluzente bicicleta que faria a sua alegria por bons e inesquecíveis anos seguintes.

Imediatamente à minha frente, havia um homem apoiado num carrinho cheio de compras. Ele tinha a perna esquerda uns 30cm mais curta que a direita, o que, certamente, exigia dele um pouco mais de esforço para realizar as tarefas do cotidiano. A vez dele estava chegando. Logo a seguir, a minha chegaria também.

Nesse momento, fui abordado por um rapaz que me pediu que eu deixasse que um casal que estava no fim da fila – e que ele não conhecia – passasse na minha frente, justificando que a mulher tinha nos braços uma criança que talvez não tivesse ainda um mês de vida e o homem apenas uma cesta de compras com poucos itens. A lei que garantiria esses direitos só viria seis anos depois.

Respondi, convicta e afirmativamente que sim. Sugeri, inclusive, que ele falasse com o sujeito que estava à minha frente, afinal, ele seria o próximo e pouparia ainda mais tempo do jovem casal e seu bebê.

Mas qual não foi a minha surpresa pela resposta! Alegando que já estava ali havia uma hora e meia, o homem negou a gentileza quase que sem olhar para quem a pedia.

Assim, pai, mãe e criança foram trazidos até mim e se postaram agradecidamente na minha frente.

Confesso que me senti indignado com a atitude daquele homem. Imaginava, como jovem pai que eu também era, que as necessidades de uma criança devessem gozar de prioridade naquela situação. Era mesmo insalubre a sua permanência naquele ambiente quente, úmido, em meio à aglomeração natural de um grande supermercado às vésperas do Natal.

Inocentemente, supus que um homem naquelas condições físicas seria mais sensível àquela necessidade, tão especial quanto a dele.

Talvez até preconceituosamente, eu esperasse mais dele.

De repente, surge a vida, de óculos e jaleco branco, um bastão de giz numa das mãos e apagador na outra e assume a situação. Somos alunos, agora.

Ao içar do fundo do carrinho um pacote de refrigerantes em lata, eis que o homem desequilibrou-se e caiu. Faltara-lhe a perna de apoio. O percurso até o chão só não foi completo porque o pai da criança o sustentou nos braços, deixando cair a cesta de compras que segurava, espalhando pelo corredor o seu conteúdo. Além de recolocar o envergonhado deficiente de pé, ainda o ajudou com os refrigerantes.

O bom pai foi-se daquele episódio para sempre, sem saber que protagonizara tamanho paradoxo de aprendizado para algumas pessoas ali, entre elas, eu. Esta poderia ser só mais uma lembrança da satisfação sádica de dizer bem feito! Muito, além disso, porém, fica aqui o meu agradecimento pela bela aula. Espero que haja ao menos mais um agradecido, disposto a ceder o seu lugar a uma criança numa próxima vez. (*) Escritor

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