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Enterrou o filho vivo

Pasmem-se, foi verdade. Há muitos anos, numa cidade do centro Oeste de Minas

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 18/04/2015 às 19:43Atualizado em 17/12/2022 às 00:32
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Pasmem-se, foi verdade. Há muitos anos, numa cidade do centro Oeste de Minas, vivia uma moça algo obesa que se engravidou de seu namorado. Segundo ela, facilitada pela obesidade, conseguiu ocultar a gravidez, realizando o pré-natal na vizinha cidade, de mais recursos, orientada pelo namorado. Fazia disfarçadamente as visitas médicas esporádicas enquanto era convencida pelo namorado que, quando do parto, a criança seria dada a adoção, levada para outra cidade regional, ainda maior. Tudo caminhou até que chegou o dia marcado para o parto. A mãe seguiu para a cidade onde ocorreria o parto, sempre auxiliada pelo seu namorado, pai da criança. A criança veio à luz forte e sadia. Como combinado, recebendo alta do hospital, o pai tomou nos braços a criança, mesmo com alguma resistência

da mãe, mas convencendo que melhor seria dar a criança a adoção e passarem entre família como se nada tivesse acontecido.

Afastando-se o pai com o bebê da mãe dele, essa foi ao ponto do ônibus e acabou por tomar o próximo ônibus não o imediato, porque se atrasou, mas no intuito de voltar a sua cidade de origem. Por opção pessoal, tomou assento ao final do coletivo. Seguindo seu curso o veículo, qual não foi sua surpresa. O seu namorado toma o mesmo ônibus, ponto adiante, levando a criança. Seu coração, narrou após, encheu-se de alegria, na esperança de que o rebento seria dado em adoção na sua própria cidade e que teria, ao menos, a chance de fitá-lo discretamente.

Sendo a residência do namorado antes, esse desceu do ônibus primeiro. Ela tinha preferido não se apresentar ao namorado ali, receosa de sua reação. Desceu ao seu tempo e rumou para casa. Ali, todos desconfiados da demorada saída, apertaram a mãe da criança sobre o ocorrido e ela, tomada ainda pela emoção da maternidade, acabou por declarar os fatos.

Mais tarde, chega à casa dela o seu namorado, com “cara de paisagem”, mas que não durou muito. Cobrado da criança, disse ter dado a adoção na outra cidade, quando foi desmentido pela mãe que queria seu filho, de qualquer forma, posto que não havia ainda tempo para se consumar a adoção clandestina, e já apoiada pela família.

A solução foi chamarem a polícia. Apertado, contou a verdade o rapaz. Descera no ponto de ônibus e perto de sua casa tinha feito um buraco onde colocara o corpinho da criança e a enterrara, ainda viva. Lá foi encontrado o corpo. Questionado posteriormente pelo juiz como se dera, se não se arrependera no ato, limitou-se a esclarecer que jogando a terra, o chorinho foi minguando até parar e que não teve iniciativa de reverter o ato. Asfixiou.

Submetido a julgamento, foi severamente acusado por uma jovem e tenaz Promotora de Justiça, que fizera não só o réu como todos os presentes ficarem absolutamente conscientes da monstruosidade do ato. Aliás, o que elevava a perplexidade era que foi o ato por demais premeditado. O agente planejou longamente matar o filho daquela forma, sem recuar da perversidade!

Possuía então o réu vinte e um anos de idade e recebera a pena de vinte um anos de condenação, advertido pelo juiz de que aquela pena, do tamanho de sua vida, seria para tentar aplacar em sua consciência pela vida do filho que matara, até porque, disse o juiz, seu ato colocava em questionamento a própria natureza humana. Do que seria capaz  o ser humano?

Passado algum tempo, por ação de bandidos graduados, houve uma fuga em massa no presídio local, levando armas inclusive. Todos fugiram, exceto o pai do filho enterrado vivo. Portando, para apuração, era ele, nesse caso, testemunha, e por isso novamente foi levado diante daquele juiz. Este, após apurar sobre a fuga, perguntou ao depoente por que não quisera fugir, se tudo restou escancarado. Respondera, então, em lágrimas: “Vocês fizeram eu entender que o que fiz foi tão grave, tão horroroso, que preciso pagar cada dia da pena que recebi, para tentar aliviar um pouco meu ser”.

Com um nó na garganta, o juiz também se aliviou da tamanha descrença que tinha tomado do ser humano! Ressurgiu a esperança, no remorso e no arrependimento ditos pelo Senhor. Novamente uma semente de amor.

Afinal, recusada a oportunidade de fuga plena e palpável, o arrependimento deixou de ser retórica de réus apenas com fito de defesa. Naquela total escuridão, ressurgiu um verdadeiro fio de luz no fim do túnel.

(*) Juiz de Direito

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