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O corte americano

Quando eu era mais novo, lá na década de 1960, um dos meus maiores medos

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 12/04/2015 às 12:18Atualizado em 16/12/2022 às 03:33
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Quando eu era mais novo, lá na década de 1960, um dos meus maiores medos – e eu tinha vários – era o de cortar o cabelo. Levar os filhos para cortar cabelo não era tarefa fácil, e era incumbência do meu pai. Ele juntava os três filhos mais velhos e escolhia um fim de tarde para nos levar ao barbeiro. Naquele tempo, frequentávamos a barbearia, mesmo sem qualquer vestígio de barba. As mulheres cortavam cabelo com o cabeleireiro feminino, no salão de beleza.

O meu medo era de que meu pai mandasse o barbeiro fazer o “corte americano”, como era conhecido na época o corte raso, raspado, deixando apenas uma penugem no cocuruto. Era a moda daqueles tempos militarizados, da guerra do Vietnã, dos golpes militares e dos quartéis sombrios. Eu tive um professor no ginásio que dizia que cabelo comprido e barba tirava a atenção dos estudos, não podia. Entretanto, outro professor, mais crítico, dizia que isso era invenção dos nazistas. Aí, tínhamos de fazer um esforço danado, silencioso, para um discernimento que nos permitisse nossas próprias escolhas, ainda que sem condições de discuti-las, pois não era tempo de discutir nada, só de ouvir e obedecer.

Mas esta crônica não é sobre corte de cabelos nem sobre os tempos bicudos de antanho, mas sim sobre jardinagem. É que vejo certos jardineiros trabalhando e penso logo no meu antigo barbeir “vamos raspar tudo”?

Quem me salvava eram os Beatles, os Rolling Stones e o pessoal do Led Zeppelin, além do Caetano Veloso, é claro!

Quem salva os jardins, as praças e os parques de hoje são as concepções mais ecológicas, que valorizam a diversidade; são as ideias de Burle Marx, do José Lutzenberger; as concepções relacionadas à importância da biodiversidade. O Brasil é um país tropical, lugar de calor e de chuva, de seca e de umidade, de muita diversidade, de folhas e de muita massa verde. A sombra é necessária, assim como as folhas secas que protegem o solo. Gramas, arbustos, trepadeiras, heras, palmeiras e árvores compõem um mosaico interessante. Extensos gramados verdes não ajudam muito, embora muitíssimo pior são as praças cimentadas, com arbustos confinados a espaços mínimos e árvores enforcadas e mutiladas.

Quem salva os jardins são os bons jardineiros, não os que usam barulhentas e predatórias roçadeiras, mas os que, como os antigos barbeiros, com suas mãos hábeis, deixavam os cavalheiros elegantes e faceiros. Preocupam os que usam e abusam de venenos, os que matam os seres vivos do solo e, mais ainda, os que os incentivam e elogiam.

Jardinagem é arte, é carinho com a natureza, com as plantas, com os animais e as pessoas. Que os jardineiros, e quem os contrata, compreendam isso, tanto como compreendia meu barbeiro de infância que, mesmo fazendo troça, sempre respeitou meu desejo e nunca me raspou a cabeleira rebelde.

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