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Dos oito aos oitenta

Um dos caprichos da vida é não marcar a hora da morte. Ninguém sabe quando vai

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 21/03/2015 às 19:40Atualizado em 17/12/2022 às 00:55
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Um dos caprichos da vida é não marcar a hora da morte. Ninguém sabe quando vai ou como vai. É uma magia da fé em cada amanhecer. Planos são feitos, mas sem a certeza da consumação em face de não se saber o dia da partida.

O certo é que temos que acreditar que vamos viver mais. Viver para o hoje, viver para toda a vida, viver para o presente, para o futuro, em termos, e muito, no contexto, viver para o infinito. Isso para que não percamos a graça do viver.

São as lições que a vida nos dá.

Certa feita, algo depois que perdi subitamente uma pessoa amada, e ainda estava ardentemente abalado pela fragilidade da vida, fui convidado para uma festa de aniversário de um amigo. Fazia ele oitenta anos. Comemoraria, certamente e merecidamente, em grande estilo.

Sem estímulo para uma festa àquele tempo de dor, resolvi homenageá-lo posteriormente com uma visita. Morava ele em uma fazenda e com muita atenção recebeu-me, até porque sabia da minha contusão sentimental pela esmagadora perda há pouco tempo.

Aparentemente distraído, chamou-me para mostrar seu novo investimento.  Tomou-me pelo braço dirigindo a uma área próxima, cercada e toda plantada de seringueiras. Plantada de seringueiras,

repito. Armei um discreto sorriso no rosto, até porque pensei que de fato fosse bom o investimento, mas guardei comigo intimamente uma pergunta, com uma pitada de ironia. Plantar seringueira aos oitenta anos?!

Calculei, no mínimo seriam seis anos para se beneficiar da produção de seu látex. Será? Com filhos e netos ricos e criados, para fins hereditários não seria. Pela quantidade, não seria para "semente". Tomei aquilo apenas como o impulso da sua força espiritual. Mas que fiquei intrigado fiquei.

Pois é! Esse meu amigo veio a óbito aos noventa e seis anos. Beneficiou-se do investimento seguramente por longo tempo.  Foi então que entendi a lição que me dera, no auge da minha dor, jovem que eu ainda era.

Logo após aquela visita tive a oportunidade de plantar mudas de ipês, e o fiz lembrando dele, embora estivesse ainda extremamente desconfiado do alcance do viver. E graças a ele, já pude ver as flores desses ipês, muitas vezes. Já até têm filhos próprios esses ipês!

Com a notícia da passagem do amigo em foco (honro-me de sempre ter tido amigos idosos, muito aprendi e aprendo com esses) recordei-me de todo o episódio, levando-me o pensamento aos meus oito anos.

Sonhando em ter em casa uma jabuticabeira, fruta da infância que tanto gostava, pedi para minha mãe que conseguisse uma muda para plantar no quintal. Ela, sempre ativa, trouxe-me logo a muda. Plantei, bem orientado, e aguei alguns dias. Até que perguntei para ela quando tempo levaria para colher os frutos. Respondeu serenamente. Cerca de oito anos! Assustei-me. Desiludi. Afinal era tudo que tinha vivido até então e, àquele tempo, não parecia-me tão pouco. Consequência. Negligenciei no trato e a muda morreu. Pois é! O que são oito anos hoje? Quanta jabuticaba já teria colhido ali? Mas, criança é imatura!

Levei anos para aprender com o ancião. Para aprender a dar ouvidos a eles, e compreender esses lances do viver. Para ver que a vida sempre se reinventa, e que podemos fazê-la renovar com esperança e fé.                  

Portanto, entre o oito e o oitenta há muita vida a viver. Dosá-la entre o trabalho e o prazer, entre o presente e o futuro, sem do infinito se esquecer, foi a sábia lição do ancião.

Compartilho. Não desistam.

 (*) Juiz de Direito

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