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Ezequiel

Era esse mesmo o nome daquele negrão. Não era Matuzalém. Era Ezequiel

Padre Prata
Publicado em 01/03/2015 às 11:21Atualizado em 17/12/2022 às 01:13
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Era esse mesmo o nome daquele negrão. Não era Matuzalém. Era Ezequiel. Não era criminoso. Dizia que era “profeta”. Foi dele que me lembrei ao ler notícias recentes. Aparecia lá em casa, sempre aos domingos. Alto, espadaúdo, voz estridente, irritante. Bigodão grosso caindo pelas laterais da boca. Não sei de onde vinha, muito menos o que fazia. Só me lembro dele conversando com meu pai, sentado num catre, lá na salinha assoalhada com tábuas largas e empenadas. Eu devia ter por volta de uns dez anos.

Apesar de ter medo dele, havia alguma coisa nele que me fascinava: eram as coisas misteriosas sobre as quais falava. Trazia consigo uma grande Bíblia de capa preta e uma bola de vidro de cor escura, do tamanho de uma laranja. Desenhados naquela bola havia vários arabescos de formas estranhas. Era como se fosse um livro. Ia lendo coisas sobre os acontecimentos futuros. Dizia que os planetas eram seis, segundo lhe informara um espírito do Himalaia. Apontava naqueles desenhos com uma unha grande e suja. Outras vezes, lia em sua Bíblia coisas incompreensíveis para mim. Até hoje não sei se era crente, espírita, católico, profeta, ou o quê. Misturava tudo numa algaravia sem pé nem cabeça. Meu pai ouvia calado, fingindo concordar.

Certa vez, apareceu com uma complicadíssima engenhoca, dizendo para meu pai que descobrira a lei do “moto-contínuo”, o que até hoje não sei de que se trata. Puxando um elástico, botou a máquina a funcionar. Depois de cinco minutos, comunicou: “Já vendi esse meu invento para a Alemanha, meu nome vai ficar nos livros”.

Numa de suas últimas aparições, meu pai perguntou se ele era casado. Ezequiel não respondeu logo. Ficou um tempo em silêncio, como se estivesse mergulhado no passado. Tomou sua Bíblia e leu a história de Sansão e Dalila, o que para mim era uma novidade. Gostei daquela história, que ouvia pela primeira vez. No fim, fechou a Bíblia com solenidade e confessou: “Casado eu nunca fui, seu Alberto, mas fiquei ajuntado com uma mulatinha dengosa e de bela feição. Com todo respeito e consentimento dos pais dela. Depois de cinco anos, ela procedeu mal. Não bati, não xinguei, não matei nem mandei matar. Procurei pelo pai dela e entreguei ela com todo respeito e consideração”. Ezequiel ficou calado por longo tempo, enquanto retirava uma binga e uma pederneira do bolso e preparava um cigarro. Foi só então que resolveu falar como se pronunciasse uma sentença milenar: “Casar é perigoso”.

(*) Membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro

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