ARTICULISTAS

O japonês e a galinha turca

Em 1939, eu era aluno da quinta série ginasial. Era interno no Seminário

Padre Prata
Publicado em 22/02/2015 às 13:42Atualizado em 17/12/2022 às 01:19
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Em 1939, eu era aluno da quinta série ginasial. Era interno no Seminário. Naquela época, tornei-me amigo de um japonês que cultivava hortaliças e um imenso canteiro de rosas. Não sei quando chegou nem de onde veio. Também não guardei seu nome. Nós o chamávamos de “japonês”, simplesmente. Ele não se incomodava. Era um tanto misterioso. Conversava pouco. No quartinho onde dormia, passava os domingos escrevendo e desenhando. Não entendíamos aqueles textos. Eram escritos em japonês. Os desenhos pareciam croquis de máquinas, de alambiques, não sabíamos o que era. Era um homem polido, atencioso e prestativo. Era inclusive religioso.

A casa de onde vinham nossas refeições era logo ao lado. A cozinheira, Dona Maria Nega, além do cuidado das panelas e pratos, tinha um hobby bem definid gostava de criar galinhas turcas, aquelas de pescoço pelado.Acontece que aquelas galinhas, vez por outra, visitavam os canteiros do japonês. Ciscavam onde bem entendiam. Era um desastre.

O japonês pediu a ela que fechasse aquelas “turcas”. Avisou uma vez. Nada adiantou. Avisou duas, três, cinco vezes. Nada. O que fez então? Tomou um estilete, furou a nuca de uma delas e atirou-a do outro lado.

Não é preciso dizer que aquele gesto deu um bode de todo tamanho. Dona Maria Nega, apesar dos cem quilos, pulou nos tamancos. Bufando, chamou o Reitor do Seminário e fez, aos berros, o maior escarcéu. Fez um relato hipervalorizado do “crime”: eu sabia que aquele japonês era um espião que se escondia do lado de dentro daquela cara amarela. Era uma ameaça para o Brasil.

O Reitor do Seminário, usando de seu poder, chamou a polícia. Vieram uns dez, todos de polaina, boné e fuzil com baioneta. O japonês foi preso e algemado. Nós, os alunos, boquiabertos, olhávamos tanta violência e injustiça. Logo no corredor de saída, um dos soldados, para mostrar autoridade, deu um tapa no rosto do preso, gritand “Toma, espião safado.” Lembro-me bem, ainda hoje, o coitado daquele japonês, voltando o rosto para o agressor e dizend “Se fiz alguma coisa errada, por que não me diz? Se fiz o certo, por que me bate?”

Foi uma revolta geral entre nós, estudantes. Protestamos contra aquele abuso do poder. Como consequência, seis foram expulsos do Seminário. Eu era um deles. Quando já estávamos arrumando as malas, o bispo Dom Frei Luiz Maria de Santana veio ao Seminário e cancelou nossa expulsão, desautorizando o Reitor.

Jamais consegui saber o que foi tramado nos bastidores, o porquê de nosso perdão. Tanta confusão por causa de uma galinha turca, de pescoço pelado. Por que conto esse episódio? É porque, desde aquela época, aprendi que o poder é uma coisa, autoridade é outra. O poder oprime, inclusive o religioso. A autoridade procura compreender, ensinar, corrigir com respeito e amor pelo outro.   

(*) Membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro [email protected]

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