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A maçã-do-amor

Visita para você, avisa-me o reitor. Fui até a portaria. Lá estava alguém, de pé

Padre Prata
Publicado em 26/10/2014 às 11:27Atualizado em 17/12/2022 às 03:02
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“Visita para você”, avisa-me o reitor. Fui até a portaria. Lá estava alguém, de pé, à minha espera. Era ele, o Gumercindo, um mulatão que trabalhava na fazenda de meu pai. Como sempre, de chapéu e polainas. Todo mundo falava que era mentiroso, conversador e trapaceiro. Pegava cobra viva, virava sapo de avesso e morria de medo de mandruvá.

Era ele mesmo. Viera me visitar no internato. Contou muita coisa lá de nossa fazenda, a Estiva. Antes de despedir-se, tirou do bolso uma moeda de 500 réis: “Para você comprar uns doces”. Naquele tempo, 500 réis eram para criança um bom dinheiro. Fiquei feliz. Voltei para a sala de estudos acariciando no bolso aquela moedinha quente. A figura esgalgada do Gumercindo sempre me enternecia. “O que falavam dele era mentira”, pensava.

A história dessa moedinha explica, de certo modo, um tipo de comportamento em minha vida: não sei negar dinheiro às crianças que me pedem. Sei que, na maioria, são uns malandrinhos. Sei que são muito mais vivos que o Gumercindo. Sei que estão me enganando. Sei que não têm nenhum irmãozinho precisando de leite. Sei de tudo isto, mas não resisto, dou a moedinha assim mesmo. Faço isso porque me lembro daquela moedinha de 500 réis que me fez, um dia, tão feliz.

Não faz muito tempo, alguém tocou a campainha de minha casa. Eram nove horas da noite e chovia bastante. Ao abrir a porta, vi, diante de mim, uma criança. Não tinha mais de oito anos, presumi. Estava muito suja, cabelos despenteados, uma maçaroca empapada de chuva. Chorava baixinho olhando para o chão, humilde. Na mão um pequeno tabuleiro, onde se via uma maçã-do-amor. Soluçando, começou a falar: “Moço, minha mãe me mandou vender essas maçãs. Uns meninos da rua me pegaram, me bateram e me tomaram as maçãs. Estou com medo de voltar para casa porque vou apanhar muito de minha mãe. Será que o senhor podia me comprar essa que sobrou? Me ajude, moço”. Acreditei no garoto. Acreditei naquelas lágrimas, acreditei naquela história. Lembrei-me da moedinha do Gumercindo e me enchi de compaixão. “Olhe aqui, vou te ajudar. Qual o preço de todas as maçãs que te roubaram?” O diabinho deu o preço, era razoável. Paguei e fui dormir com a consciência tranquila.

Dias depois, contando a história a vários amigos meus da mesma rua, tive a maior surpresa. Aquela mesma história tinha sido contada para vários deles, naquela mesma noite de chuva. Também alguns deles compraram as maçãs-do-amor daquele mesmo garotinho de cabelos encaracolados, de olhos tristes e falinha mansa. Um anjo de candura.

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