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Um escândalo da ditadura

Em 1964, regime militar prendeu nove chineses para tentar provar comunismo

Eny Moreira
Publicado em 09/10/2014 às 20:14Atualizado em 17/12/2022 às 03:19
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Em 1964, regime militar prendeu nove chineses para tentar provar “comunismo” de João Goulart.

O recém-lançado “O caso dos nove chineses”, livro escrito por Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo, joga luz sobre o primeiro escândalo internacional praticado pela polícia política da ditadura civil militar, instaurada no Brasil em 1964: a prisão de nove chineses — jornalistas e altos funcionários integrantes da Missão Comercial Chinesa, que aqui estavam, desde 1961, a convite do presidente Jânio Quadros. A finalidade da missão era propiciar substancial expansão do comércio internacional do Brasil com a República Popular da China.

Durante os 15 anos em que fui assistente do Dr. Sobral Pinto, por reiteradas vezes ouvi-o contar detalhes desse caso. Ele fez a defesa dos nove chineses perante a Justiça Militar. Lembro-me perfeitamente de incidentes preciosos desta história, como por exemplo, o fato de o ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco, haver, no dia 21 de agosto de 1961, transmitido em carta ao vice-presidente João Goulart, a notícia de que Jânio resolvera constituir a “Missão João Goulart”. O objetivo era dar prosseguimento às conversas iniciadas com uma missão chinesa que visitara o Brasil em maio daquele mesmo ano.

Entre os compromissos assumidos em Pequim por João Goulart, figurava a autorização para o estabelecimento no Brasil de uma representação comercial permanente da China, bem como a realização em nosso país de uma exposição comercial e industrial. Ambas as concessões foram feitas em termos de reciprocidade. Por conta deste acordo, aqui desembarcaram, entre dezembro de 1961 e janeiro de 1964, Wang Weizhen, Ju Qingdong, Wang Zhi, Wang Yaoting, Hou Fazeng, Song Guibao, Zhang Baosheng, Ma Yaozeng e Su Ziping. Eles se encontravam em território brasileiro legalmente, com vistos oficiais fornecidos pelo Itamaraty.

Contava-me o Dr. Sobral que todos os passos e atividades do grupo eram permanentemente vigiados pela polícia política. Nada disso impediu que fossem presos três dias após o golpe de 1964. A polícia política conduziu-os ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social), onde foram torturados, fichados e interrogados.

Com os chineses, foi apreendido o equivalente a 120 milhões de cruzeiros em moedas estrangeiras — até hoje depositados no Banco do Brasil — e vários bens e objetos domésticos. Foi feita uma perícia em documentos escritos à mão e em língua chinesa, o que resultou num laudo com tradução falsa daqueles papéis. O advogado Sobral Pinto conseguiu a nomeação de um tradutor de confiança e comprovou a farsa: o que os militares chamavam de “diário de atividades subversivas”, eram agendas nas quais os chineses anotavam os compromissos de trabalho, tais como reuniões em órgãos ou autoridades públicas brasileiras, com o objetivo de efetivar negociações sobre as possibilidades de intercâmbio comercial entre os dois países.

Apesar de tudo isso, foram acusados de serem “agentes e espiões do comunismo internacional”, e de terem ingressado no território brasileiro para subverter a ordem política e social estabelecida na Constituição de 1946, visando a instaurar aqui um regime comunista de inspiração chinesa. Esquecido no Brasil, caso ainda é lembrado na China. A defesa produzida pelo Dr. Sobral Pinto, junto ao Superior Tribunal Militar (STM), provou que a prisão e julgamento dos chineses foram o pretexto usado pelos militares para demonstrar que o presidente João Goulart era comunista e, por isso, havia sido deposto. Até hoje os chineses continuam condenados a 10 anos de prisão e, no plano legal, expulsos do Brasil. Nunca o dinheiro apreendido foi devolvido ao governo da China.

Há poucas semanas, integrantes da Comissão Nacional da Verdade (CNV) colheram, informalmente, o depoimento do advogado Danillo Santos, um dos poucos personagens ainda vivos desta história. Santos foi contratado pelos chineses para cuidar da classificação e liberação, pela então Carteira de Comércio Exterior (Cacex) do Banco do Brasil, de mais de 5 mil produtos que eles pretendiam mostrar na exposição comercial, a ser realizada em Niterói. Foi Santos também quem convenceu o Dr. Sobral Pinto a aceitar a defesa dos chineses.

A CNV encerrará seus trabalhos em dezembro, quando entregará à presidente Dilma Rousseff um relatório final com todas as investigações realizadas em dois anos e sete meses de atividades. No relatório, estarão novos dados sobre casos já conhecidos do grande público, como o atentado a bomba do Riocentro e o assassinato do deputado Rubens Paiva. Ao lado deles, não poderá faltar uma análise detida sobre o caso dos chineses.

Cinquenta anos depois, esse escândalo, que ainda nos envergonha, merece uma reparação. Para o bem da harmoniosa convivência entre Brasil e China — duas nações que se autoproclamam “parceiros estratégicos” —, é preciso restabelecer a crença na total inocência dos nove cidadãos chineses. E, quem sabe, provocar o Estado brasileiro a anular a absurda condenação, revogando, também, o decreto que os expulsou.

Se no Brasil esquecemos desses fatos, na China eles continuam vivos na memória do governo e de seu povo.

(*) Advogada, integrante da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, presidente-fundadora do Comitê Brasileiro para Anistia e idealizadora do livro “Brasil: Nunca Mais”

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