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Entrevista: Liberar armas é a falência do Estado, diz Tico Santa Cruz

Nascido no Rio de Janeiro, o cantor, compositor e escritor Tico Santa Cruz se tornou um dos mais célebres roqueiros do Brasil

Larissa Alves Correa
Publicado em 23/03/2019 às 14:42Atualizado em 17/12/2022 às 19:18
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Nascido no Rio de Janeiro, o cantor, compositor e escritor Luís Guilherme Brunetta Fontenelle de Araújo – Tico Santa Cruz – se tornou um dos mais célebres roqueiros do Brasil. Sua trajetória começou quando, no início da internet no Brasil, numa sala de bate-papo, conheceu seu parceiro Eduardo Simão, que, junto com Tico, formaria a banda Detonautas Roque Clube. Aos poucos foram tendo algumas formações até chegar à principal, que era Tico Santa Cruz, Renato Rocha, Rodrigo Netto, Fábio Brasil, DJ Cleston e Eduardo Simão. A banda alcançou muito sucesso, sobretudo entre o público teen, fazendo com que o estilo pop rock tocado por eles tergiversasse em muitos e diferentes movimentos. Tico Santa Cruz, vendo-se numa crise musical, entrou para o reality show “A Fazenda” e conseguiu em pouco tempo arrumar confusão com a maioria dos participantes. Tico é um dos principais militantes da esquerda no Brasil, sendo, inclusive, um dos que mais sofrem ataques nas redes sociais. Defensor do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e de movimentos de esquerda, tem se tornado frequentemente um ativista de direitos LGBT e defensor da Marcha da Maconha. Tico realizou show em Uberaba na última sexta-feira (22) e concedeu entrevista exclusiva à articulista do Jornal da Manhã Larissa Alves, quando falou do momento que o rock vive no Brasil, sobre o governo Bolsonaro e a aliança com os Estados Unidos e se posiciona a respeito da flexibilização da posse de arma. 

Jornal da Manhã – O Detonautas esteve no auge no início de 2000, abrindo shows de bandas como Red Hot Chilli Peppers, Silverchair e emplacando hit atrás de hit, além de levarem o prêmio VMB do mesmo ano. Como foi abrir para bandas como essas? E que falta faz a MTV Brasil para o crescimento e divulgação de novas bandas?

Tico Santa Cruz – A MTV, na década de 90, foi o principal canal de disseminação de música. Eu lembro que cresci ouvindo a MTV e sonhando em um dia tocar lá. Quando o Detonautas lançou o primeiro e o segundo disco, a gente acessou um nível mais alto de sucesso nacional e a MTV foi um caminho, uma ferramenta que potencializou muitos artistas e não só a gente. Mas usufruímos desse espaço que privilegiava a música. Depois, a MTV virou uma TV de reality shows, games e coisas que não tinham muito a ver com a música e acabou se perdendo. E a MTV faz muita falta, mas acho que o rock, de modo geral, perdeu muito espaço hoje. Não só na MTV, que ainda existe em outro formato. Mas não se ouve muito o rock na Multishow, nem nas rádios ou TV. 

JM – Já tem algum tempo que você realiza esses shows solo. Pode-se considerar uma carreira paralela à banda?

TSC – Não, os shows que realizo sozinho são com o intuito de dar visibilidade às bandas que estão no mercado batalhando por espaço e também movimentar a cena do rock. Eles tocam as músicas deles e depois a gente faz um repertório variado. 

JM – No penúltimo disco, a gente pôde ver as participações especiais de vozes como Alcione e Lucas Lucco. Os nomes da vez são Anitta e Pabblo Vittar. Você acha possível, em algum momento, o rock conversar com um estilo tão oposto?

TSC – A gente entendeu que o rock ficou bastante conservador, num ponto de vista geral, no modelo estético dele, na forma como a galera está fazendo a música, assim como no discurso dele. O que para mim é um retrocesso, porque o rock sempre foi um estilo de vanguarda, de transgressão. E me assusta um pouco ver roqueiros agindo de forma preconceituosa, sendo que foram vítimas de preconceito no passado. A reprodução do preconceito me assusta. Eu já tive algumas restrições, óbvio que tem que ser feito algo que some, agregue à música, porque só pela mistura de estilos não acho conveniente. Tem que haver um propósito maior e uma mensagem atrás dessa mistura. E dessa conversa criar uma coisa bastante interessante e que seja relevante. 

JM – Você disse que o rock perdeu um pouco de espaço. E, por outro lado, vemos o funk cada vez mais forte em todas as rádios e TVs do país. Como você analisa o funk?

TSC – O funk já teve momentos de muita popularidade, na época de Claudinho e Bochecha, por exemplo, explodiu nacionalmente. Tocaram muito nos anos 90. O que está acontecendo agora, na verdade, é que, através da linguagem da internet, muita coisa viraliza. Mas hoje em dia é uma forma de expressão extremamente legítima e importante da manifestação da juventude, assim como o rap. 

JM – Todos sabemos que você é simpatizante da Marcha da Maconha. Você acredita que em algum momento o país vai estar preparado para a legalização das drogas de uma maneira geral?

TSC – A minha simpatia pela causa se dá por entender que essa guerra às drogas não funciona. Já tem estudos que comprovam que em nenhum lugar onde se apertou a legislação em relação às drogas tenha havido resultado efetivo. Pelo contrário, aumentou o número de homicídios, de crimes, de prisões por questões de droga. Pessoas que foram pegas com quantidades pequenas de drogas estão encarceradas e, talvez, nem devessem estar presas. O Brasil adotou uma política, esteticamente falando, “conservadora”. Na verdade, existe mais hipocrisia do que efetivamente o conservadorismo. Não é algo que realmente tenha a intenção de preservar famílias e tradições, que é a conversa que se tem hoje em dia, mas, na prática, é mentira. O Brasil se espelha tanto nos EUA, mas lá eles arrecadam milhões em impostos com a venda legal da maconha. Nós somos um país muito atrasado para colocar temas como este em pauta. Porque, antes de se ter uma legislação favorável, precisa ser feito um debate honesto sobre o assunto, o que ainda não aconteceu. 

JM – Sobre esta nova aliança Brasil-Estados Unidos, você vê algo benéfico para o povo brasileiro?

TSC – Ainda não temos nada firmado, não basta só o presidente ir lá e falar o que ele acha que tem que fazer, tudo isso vai passar pelo Poder Legislativo também. Então, vai ser debatido. A questão do visto, da Base de Alcântara, do pré-sal, desses movimentos de perda de autonomia do país. Não acho que as coisas já estejam resolvidas. Mas acho que estamos caminhando para uma entrega que não é saudável para o nosso país. Não vejo benefícios nesses direcionamentos que o governo está dando. Parece-me coisa de quem não sabe ao certo o quanto são valiosas as riquezas do Brasil e está fazendo um jogo populista, que é o que a maioria quer ouvir. Soa-me muito estranho uma pessoa que diz ser patriota e ir se colocar de maneira submissa a outro país. Mas também não podemos esquecer que a China é o principal parceiro econômico do Brasil hoje. Então, precisamos saber como a China vai se comportar diante dessa aproximação do Brasil com os EUA. Porque se a China resolver começar a retaliar o Brasil, a gente vai ter um prejuízo muito grande em relação à economia. 

JM – Ainda nem concluímos o primeiro trimestre desde a posse de Jair Bolsonaro e já se ouve muitas especulações de possíveis atritos entre o presidente eleito e seu vice, Hamilton Mourão. Você acredita que esses pequenos atritos, em longo prazo, podem resultar em um novo golpe, um novo impeachment?

TSC – Acho questões como estas imprevisíveis. Tudo são especulações. Todas as especulações que eu fiz desde antes do impeachment da Dilma, até agora, todas elas eu errei. Então, não me arrisco mais a fazer nenhum tipo de especulação. O cenário muda muito rápido, é muito volátil, a informação que tínhamos ontem, hoje já pode ser improcedente. E eu não tenho a menor ideia do que pode acontecer com o país. A sensação que eu tenho é de que a gente está em uma nau que está sem controle. Não vejo nada adiante, nem para bem e nem para mal. Não vejo ninguém direcionando o país e “seja o que Deus quiser”. 

JM – O principal mote de Jair Bolsonaro durante a campanha era facilitar o armamento das pessoas. Você acha que, liberando a posse de armas para qualquer cidadão, vamos conseguir resolver nosso problema, que é a segurança pública?

TSC – Acho que isso é decretar que o Estado não é capaz de resolver o problema da segurança pública. É assinar o atestado de que ele não tem competência para tal. E que o Estado brasileiro, de modo geral, é incapaz de organizar a sociedade e oferecer segurança digna e da qual todas as pessoas dependem. Eu posso fazer um curso de tiro e comprar uma arma, porque eu tenho dinheiro, mas quem não tem vai continuar exposto à violência, à insegurança e não vai conseguir se defender. Ainda mais da própria violência que muitas vezes é praticada pelo próprio Estado. Eu tenho um grande amigo, que é instrutor de tiro, e ele me relatou que está ganhando muito dinheiro, porque milhares de pessoas procuram seus serviços hoje em dia para poder ter a posse de arma. Mas eu não sei o que as pessoas pensam, porque no momento em que o bandido entra na sua casa, ninguém vai querer promover um tiroteio dentro de casa, envolvendo seus familiares. Eu não tenho vontade de aprender a atirar e nem de ter uma arma em casa, porque não sei se saberia me defender diante de uma situação extrema e nem se teria coragem de matar um cara. Mas, definitivamente, não é a solução; para mim, isso é uma coisa de falência do Estado como provedor de segurança. 

JM – O governo brasileiro tem falado muito sobre assinar o acordo para uso da Base de Alcântara pelos EUA... Será que a intenção dos EUA é se preparar para uma possível guerra?

TSC – Claro que, geologicamente falando, os EUA ficam com um ponto estratégico na América do Sul, assim como a Rússia e a China entendem que a Venezuela e Cuba são países importantes para eles terem bases estratégicas numa possível guerra entre EUA, Rússia, China, divididas, polarizadas de novo nesse mundo onde não existe mais essa coisa de comunismo. Mas, enfim, numa guerra comercial ou numa guerra por vias de fato, o que eu acho difícil também, porque aí acabaria o mundo de verdade. É estratégico na geopolítica que você esteja próximo de algum território que é importante, e o Brasil é importante, porque se a China e a Rússia estão estrategicamente perto dos EUA, com uma base em Cuba e uma possível base na Venezuela, com esse tipo de acordo internacional, os EUA teriam algum benefício em estar instalados no Brasil, mas nesse momento é só para terem hegemonia no território, que é o que o Estado busca. 

JM – Com relação às tecnologias e quanto as crianças estão expostas e cada vez mais cedo... Na última semana, ouvimos muito falar a respeito da boneca Momo, o que depois até ficou esclarecido que se tratava de fake news. Mas como você lida com a exposição e acesso dos seus filhos à internet?

TSC – Temos que estar atentos sempre. Eu tenho uma filha de dez anos e acesso irrestrito aos conteúdos que ela acessa na internet, grupos de redes sociais, aplicativos... Mas, também observo muito o comportamento dela, para ver se está com alguma conduta que possa ser a demonstração de que há algo não-saudável. Porém, eu também tenho um filho de dezessete anos, o que torna mais difícil ter acesso ao que ele está de fato acessando na internet, porque, na idade em que ele está, já consegue manusear melhor as ferramentas e manipular os pais. Eu, quando tinha dezessete anos, ludibriava meus pais de acordo com meus interesses. Então, a única maneira que meus pais encontravam de saber o que eu estava fazendo era por meio da confiança. Eles desenvolveram comigo a confiança de que podia contar com eles e para eles qualquer erro que eu viesse a cometer. Então, na medida do possível, ciente de que não tem como ter o controle de tudo, eu tento deixá-lo à vontade para conversar conosco sobre qualquer assunto. Mas, o que conta muito nessa idade é a educação que você ofereceu aos seus filhos. É o que conta para o que ele vai se tornar. Muita coisa que eu faço hoje na minha vida adulta, eu tenho condutas que talvez meus pais não imaginem que eu tenha, mas se eu não me prejudico e nem prejudico os outros, foi porque fui educado a saber até onde é o meu limite com cada coisa. 

JM – Temos um governo hoje que o pessoal da esquerda acredita que tenha sido eleito por disseminar notícias falsas. Como podemos ter esse olhar ao receber certas coisas pelas redes sociais antes de repassá-las?

TSC – Precisamos aprender a identificar tudo o que chega a nós por meio de redes sociais para evitarmos a proliferação de informações falsas. É necessário que a gente se reeduque para saber lidar com as redes sociais. No caso da boneca Momo, por exemplo, que dessa vez foi uma notícia falsa criada pela revista Crescer, que pegou uma outra notícia falsa do R7. E aí caiu na mão de alguma mãe preocupada, que passou para outra mãe e foi tomando essa proporção. Precisamos identificar o que é fake para não acabarmos influenciando outras pessoas. E acabamos expondo nossos filhos a esses problemas. Porque existe um jogo inverso a esse, que cria uma demanda. Quando são disseminadas notícias falsas repetidas vezes, acabamos as tendo como verdade. Esse é o paradoxo da informação. São tantas informações ao mesmo tempo que não nos preocupamos em olhar o que é verdade ou mentira. Mas, precisamos tomar cuidado, estamos passando por uma revolução tecnológica. E de agora pra frente não temos mais controle. Logo virão a inteligência artificial e muitas outras tecnologias que nem imaginamos que possam existir e que vão se estruturar dentro do que a gente conhece pela sociedade.

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