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Capitalismo exacerbado leva à depressão, diz especialista

Em 16 anos, o número de mortes relacionadas com depressão cresceu 705%

Thassiana Macedo
Publicado em 29/03/2015 às 07:39Atualizado em 17/12/2022 às 00:48
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ENTRVISTA

Em 16 anos, o número de mortes relacionadas com depressão cresceu 705% no Brasil, conforme levantamento inédito feito pelo jornal O Estado de S. Paulo, divulgado no fim do ano passado, com base nos dados do sistema de mortalidade do Datasus. Estão incluídos na estatística casos de suicídio e outras mortes motivadas por problemas de saúde decorrentes de episódios depressivos. Na última terça-feira (24), o copiloto alemão Andreas Lubitz, 27 anos, teria derrubado de propósito nos Alpes franceses um Airbus A320, quando ele e mais 149 pessoas morreram. De acordo com projeções da Organização Mundial de Saúde, em 2030 a depressão será o mal mais prevalente do planeta, à frente do câncer e de algumas doenças infecciosas. Segundo estudo epidemiológico publicado na revista especializada BMC Medicine, 121 milhões de pessoas estão deprimidas, um número quase quatro vezes maior do que o de portadores de HIV/Aids, de 33 milhões.

Diante desta realidade, a sociedade vem apresentando inúmeros casos de violência nas ruas e também nas casas das pessoas. Conflitos entre familiares e aumento no número de dependentes químicos cada vez mais jovens, o que demonstra que a população enfrenta um processo de sofrimento emocional que não distingue ricos de pobres ou homens e mulheres. Em razão desses fatores, o Jornal da Manhã entrevista o psiquiatra Marcelo Bilharinho, o qual aborda a questão do ponto de vista médico.

Jornal da Manhã – Que avaliação o senhor faz da atual situação? O que essa realidade proporciona para a sociedade atual?

Marcelo Bilharinho – É uma questão interessante e complexa. Existem relatos de depressão e distúrbios mentais desde o Velho Testamento. No livro de juízes, por exemplo, há narrativas desse tipo. A medicina greco-romana também relatava casos de depressão e ansiedade. No século I depois de Cristo, há um médico da época, chamado Areteu da Capadócia, que já relatava a existência de distúrbio bipolar, não com este nome, mas a ocorrência de oscilações de humor. Então, na realidade, problemas mentais, violência e estresse sempre existiram. Há estudos nos Estados Unidos, embora controversos, que demonstram que do ano de 1750 até 1980 aconteceu um aumento na incidência de doença mental por cada mil pacientes de nove vezes. 

JM – E o que isso quer dizer?

Marcelo Bilharinho – É preciso analisar com bastante critério, porque há o envolvimento de muitos fatores, por exemplo, a mudança da população da área rural para a urbana. Existiam doenças mentais, mas isso era mais diluído. Com a grande concentração de pessoas nas cidades, há o aparecimento de outros fatores, como competição e excesso de informações. Além disso, houve uma melhora no diagnóstico de doenças mentais, mas penso ainda que também ocorreu uma psiquiatrização excessiva. Às vezes vemos pessoas tímidas que, por causa da banalização das doenças mentais, são classificadas como fóbicos sociais, ou uma tristeza vira depressão e uma pessoa irritada vira bipolar. As doenças mentais são um problema sério que exige uma avaliação criteriosa e um tratamento adequado, mas as pessoas banalizam. Enfim, existiu realmente um aumento, mas houve também uma melhora dos critérios diagnósticos em virtude do avanço da medicina, uma mudança de comportamento e uma banalização.

JM – Tornou-se comum atribuir esses problemas à expressão “crise de valores morais”... Essa crise é consequência ou causa destes problemas da sociedade?

Marcelo Bilharinho – Sempre aconteceram problemas, porém houve de fato um aumento da violência no varejo. Quanto à violência no atacado, até que vivemos em uma época bem mais tranquila. Ou seja, não temos mais as grandes guerras, mas enfrentamos essa violência cotidiana provocada por estes fatores que citei. Junto com isto, penso que as mudanças interferem na incidência, então, a crise seria mais uma consequência. Aí entram fatores como aumento da dependência química, aumento da população, etc. Essa questão da crise de valores está ligada também à urbanização e à popularização do consumo. Hoje, o Deus é o dinheiro, por isso é ele quem manda. É claro que existem casos individuais, mas o problema é esse estímulo ao consumismo. Não estou atacando o capitalismo, e sim o capitalismo desenfreado. Isso provoca uma valorização da competitividade e a modernização favorece um excesso de informação. Além disso, hoje nós convivemos mais com a família nuclear e não tem mais aquele convício social nas confraternizações. Todos estes fatores, de alguma forma, elevaram a incidência de doenças mentais, não todas, mas anorexia em mulheres jovens, em razão da ditadura da beleza, e o transtorno de estresse pós-traumático, em virtude de episódios da violência no varejo. 

JM – O que gera essa discussão é justamente o aumento de casos de violência entre familiares, como irmão matando irmão por dívida financeira, pais matando filhos espancados, homem matando esposa ou amante, etc. Situações assim nos levam a pensar que a família está desestruturada... Há solução para isso?

Marcelo Bilharinho – Esse capitalismo exacerbado estimula o consumismo e o materialismo. O que se observa é que somos sempre bombardeados por isso, e as pessoas que não conseguem atingir as metas da sociedade, de ter muito dinheiro, status social, etc., acabam frustradas. Por isso, temos visto uma perda de valores morais e éticos, famílias disfuncionais. Penso que isso tem causado o aumento da incidência de distúrbios mentais, mas é possível ser combatido. Há tratamentos e a própria fé religiosa, independente de religião, ou seja, não é só a medicina e a psicologia que têm respostas para isso. Temos que fazer uma prevenção através da melhora dos fatores sociais e do cuidado com as famílias, com o retorno dos valores humanos. Isso tem sido feito por vários setores da sociedade, como psicólogos, médicos, sociólogos, programas sociais, mas penso que deve haver até uma colaboração por parte da mídia de entretenimento, em não fazer uma apologia do consumismo, da libertinagem no lugar da liberdade. Essa mudança também passa pela melhoria da educação nas escolas. Somos vítimas de violência do próprio Estado, através dos altos impostos sem o devido retorno, da falência dos serviços básicos, o mau funcionamento do Judiciário, que por um lado produz impunidade e, por outro, um prejulgamento. Precisaria de um esforço conjunto do governo e da sociedade, que somos todos nós, com a melhora dos serviços básicos, melhorando a educação e a saúde, com medidas preventivas contra doenças mentais e de infecções. Sabe-se que infecções em mulheres grávidas podem causar uma maior predisposição ao desenvolvimento de transtornos mentais nos filhos no futuro. 

JM – A corrupção também é um efeito dessa crise de valores, e não somente aquela cometida nos altos escalões de Brasília, mas a que aparece no dia a dia, quando uma pessoa fura a fila, quando estaciona na vaga para idosos ou deficientes e quando dá um jeitinho para burlar a legislação em benefício próprio. Como o senhor vê isso?

Marcelo Bilharinho – E isso é uma questão fundamental. O que se observa é a falta de educação mesmo e de orientação. Ou seja, há um desserviço de alguns setores da mídia, que em geral ajuda muito e até nos alerta para várias mazelas, porém há uma parte dela que faz apologia à violência gratuita, ao uso de drogas, mesmo lícitas, e tudo isso compromete a convivência social. É uma questão de respeitar o espaço do outro, ser mais humano e de cultivar a empatia pelas pessoas, no sentido de se colocar no lugar do outro.

JM – É uma questão de impor limites?

Marcelo Bilharinho – Penso que é mais uma necessidade de orientação e educação, o que tem faltado em todos os setores da sociedade. Até as gerações mais velhas, mesmo as pessoas que estão na faixa etária de 60 a 70 anos, não respeitam o outro. Trata-se do culto ao narcisismo, ao egoísmo e ao individualismo, no lugar do acolhimento, da humanidade e do respeito.

JM – O senhor mencionou o bombardeio de informações. Hoje o acesso é muito veloz e é possível saber sobre algo que está acontecendo neste momento do outro lado do mundo pelo simples click no celular. Qual é a influência das tecnologias na vida das pessoas?

Marcelo Bilharinho – Penso que têm surgido alguns problemas pelo excesso de informações. Antigamente, era a falta de informações, quando era preciso se desdobrar para conseguir algo. Hoje há um excesso delas, o que eleva a dificuldade de filtrar e gera frustrações e tensão. Há ainda a má qualidade dessas informações que fazem apologia da violência, do uso de substâncias, e levam à perda de valores familiares. Veem-se programas atualmente de um nível baixíssimo e que causam um desserviço à saúde mental da população. 

JM – Há inúmeras notícias sobre os efeitos corrosivos do crack e de outras drogas e de mortes pelo abuso do álcool. Com tanta informação sobre os malefícios provocados pelo uso de drogas, lícitas e ilícitas, por que jovens, cada vez mais jovens, se aventuram nesse mundo? Seria por fuga da realidade ou para compensar um vazio interior?

Marcelo Bilharinho – Entra nessa questão das famílias disfuncionais, ou é o caso de pessoas com patologias emocionais que realmente usam a droga para “tratar” essa angústia, só que fica pior. Penso que há uma banalização do uso de substâncias. Por exemplo, o consumo de álcool é muito aceito, mas pode causar distúrbios mentais gravíssimos, como psicose, transtornos com alienação mental grave, e pode ainda contribuir para o agravamento de quadros depressivos ou ansiosos. Ele também produz muita violência, porque a pessoa sob uso de álcool sofre diminuição da crítica e aumento da impulsividade, isso contribui muito para a criminalidade. Existe até uma minimização dos efeitos deletérios da maconha, o que é um erro terrível, porque já existem estudos comprovados que um adolescente que usa maconha frequentemente tem de três a quatro vezes mais chance de desenvolver um distúrbio mental grave no futuro, inclusive quadros psicóticos, com perda de contato com a realidade, fora os transtornos de ansiedade e depressão. Isso é minimizado, tem até passeata para apoiar o uso. As pessoas confundem, mas existem princípios ativos da maconha que realmente podem ser usados de forma benéfica, como o canabidiol, para tratar epilepsia refratária, ou princípios usados para quem sofre de náuseas em tratamento de câncer, mas isso não tem nada a ver com a maconha fumada, que tem uma concentração muito alta de tetraidrocanabinol (THC). Essa não tem nada de inocente, pois o adolescente que tem predisposição pode desenvolver até mesmo esquizofrenia.

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