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Evódio e a manguaça cultural

À época da escravidão no Brasil, para se ter o melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e o levavam ao fogo.

Gilberto Caixeta
Publicado em 03/08/2018 às 10:18Atualizado em 17/12/2022 às 04:08
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À época da escravidão no Brasil, para se ter o melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e o levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém, um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou.

Evódio não sabia disso quando começou a sua carreira no melaço cultural, mas isso pouca importa, porque vários atos independem de conhecimento de sua origem. Se soubéssemos, não seria diferente, acredito eu. No nosso caso aqui, o que vale é o relato da manguaça cultural. Então, os escravos perguntaram: — O que vamos fazer agora? Decidiram, sem que o feitor visse, guardar o melado longe das suas vistas e selaram um pacto de silêncio entre eles, até que decidissem o que fazer com aquele melado que desandou. No dia seguinte, o melado estava azedo e fermentado. Não pensaram duas vezes; misturaram o tal melado azedo com o novo, levando os dois ao fogo.

Resultad o "azedo" do melado antigo era álcool, que aos poucos foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras, que pingavam constantemente, era a cachaça. Daí o nome pinga. Quando a pinga batia nas costas dos escravos, marcadas com as chibatadas dos feitores, ardia muito, por isso deram o nome de "água-ardente". Para fugirem dos pingos nas costas, abriam a boca e os ingeriam, quando não deixavam escorrer pela fronte, através dos cabelos, que retinham a "água ardente", até a boca. Entretanto, os escravos perceberam que uma quantidade mais significativa dessa água, que gotejava do teto, adormecia suas línguas e, às vezes, os deixavam alegres e com vontade de dançar. E passaram a repetir o processo, só que, agora, não mais disfarçada de goteira, mas através da produção intencional da pinga.

— E daí? — perguntou Evódio, ao ouvir o relato. — Daí nada, só curiosidade.

Mas o contista não perdeu a chance e sacou de seu nacionalismo cultural afirmand — Se fosse uma história greco-romana ou egípcia, você não teria esta mesma reação de desdém. Como é cultura popular, em país europeizado, perde o significado por estar relacionada a índios e negros, que, na historiografia, são perdedores na batalha cultural, sem que se dêem conta de que muito das suas heranças faz parte do nosso cotidiano.

Evódio não se fez de rogad — Sou multicultural, sem desconsiderar as especificidades culturais, portanto, não se deve riscar do nosso conhecimento aspectos culturais de outros povos. Ratifiquemos as nossas diferenças contemplando a tolerância como canal de relacionamento.

Concordo com o contista e com Evódio. Às vezes, valorizamos por demais a história cultural européia e relegamos a nossa a aspectos secundários. Entretanto, qualquer estratégia às avessas é uma forma de intolerância em relação às demais culturas que formam a riqueza nacional do nosso povo.

Que todas as culturas pinguem do nosso teto, sem chibatas em lombo e sem preconceitos, porque a exaltação por demais encobre intenções inconfessáveis.

(*) professor

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