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Trinta e seis anos sem Magdalena Tagliaferro

Olga Maria Frange de Oliveira
Publicado em 06/09/2022 às 19:59Atualizado em 18/12/2022 às 14:32
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Em 9 de setembro de 2022, estaremos completando exatos 36 anos do falecimento de Magdalena Tagliaferro. Esta pianista, de origem franco-brasileira, conquistou um lugar muito especial no cenário musical do século XX, em nível mundial.

Era filha do pianista francês Joseph Paul Tagliaferro, que, no Brasil, passou a ser conhecido por Paulo Tagliaferro, e de Louise Hergenröder. Seus avós paternos eram Giovanni Antonio Tagliaferro, italiano, e Mélanie Fahys, francesa. Seus avós maternos eram naturais da Alsácia, região histórica situada no nordeste da França. Fazendo fronteira com a Alemanha e a Suíça, esta região esteve sob o controle alternado da Alemanha e da França ao longo dos séculos e reflete uma mistura dessas duas culturas. Portanto, Magdalena nasceu em 19 de janeiro de 1893, fruto abençoado de uma saudável mistura de raças. Na ocasião, a família morava na Argentina e passava férias de verão em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro.

Seus pais resolveram deixar a Argentina e vir para o Brasil, onde fixaram residência na cidade de São Paulo. Na capital paulista, Paulo Tagliaferro se estabeleceu como professor de piano e de canto, pois tinha uma belíssima voz de barítono. Ele fez seus estudos de piano e canto no Conservatório de Música de Paris, onde foi aluno de piano do compositor Gabriel Fauré. Paulo era um excelente professor, especialista no ensino da técnica pianística. Ele assumiu a educação musical de sua filha em 1898, quando ela tinha apenas cinco anos de idade. Desde as primeiras lições, Magdalena revelou ser uma criança-prodígio e, também, ter “ouvido absoluto”. O seu primeiro recital aconteceu em São Paulo, aos nove anos de idade. Sua mãe aprontou-a com um lindo vestido branco com bordado inglês. Magdalena fez a sua estreia para um grande público, interpretando o Concerto nº 20 para piano e orquestra, em ré menor, K. 466, de Mozart. A plateia fez à criança uma acolhida delirante. Ao final da apresentação, ela ganhou dos organizadores uma boneca maior do que ela.

Dois anos depois, aos 12 anos, seu pai preparou uma turnê mais ambiciosa, que incluía concertos no Brasil, na Argentina e no Uruguai. Na esteira do sucesso obtido nessa turnê, Paulo Tagliaferro resolveu retornar à França para investir na carreira musical de sua filha, encaminhando-a para o renomado Conservatório Musical de Paris. Aos treze anos, Magdalena foi submetida a uma prova de capacitação para ingresso no Conservatório de Paris, tendo sido admitida por unanimidade pela banca examinadora, tocando a terceira “Balada” de Chopin.

Um ano depois, obteve, entre 46 concorrentes, o 1º Prêmio e a Medalha de Ouro em concurso do conservatório, interpretando a “Sonata nº 2, opus 39, em Lá b Maior”, do compositor alemão Carl Maria von Weber. Participaram da banca de prova nada menos que: Moritz Moszkowski (1854-1925), Alfred Cortot (1877-1962) e Gabriel Fauré (1845-1924).

Nessa época, Magdalena apresentou seu primeiro concerto na Salle Érard, reduto dos grandes virtuoses que se apresentavam em Paris. Em seguida, tornou-se aluna de Cortot e Fauré, sendo este último diretor do conservatório. Desde 1908, com apenas 15 anos, a jovem pianista iniciou uma intensa e vitoriosa carreira de concertista. Apresentava regularmente concertos na França e em outros países da Europa, além do Brasil e Estados Unidos. Foi Alfred Cortot quem sugeriu que ela adotasse o nome artístico de Magda Tagliaferro (Madá, em francês), como ficou conhecida em todo o mundo. Curiosamente, ela jamais conseguiu introduzir esse prenome no Brasil, onde sempre foi chamada de Magdalena.

Como autêntica capricorniana, ela era elegante, inteligente, prática e independente. Foi uma das primeiras mulheres a dirigir automóvel em Paris. Teve uma vida amorosa bastante agitada, tendo se casado três vezes. Cheia de charme e portadora de um carisma muito especial, teve inúmeros admiradores ao longo de sua vida, como foi o caso de Alfred Cortot, um incorrigível conquistador. Magda era vaidosa, mantinha seus cabelos ruivos muito bem arrumados, estreava um novo vestido a cada apresentação, estava sempre impecavelmente maquiada e gostava de manter os lábios e as unhas sempre pintados de vermelho. Adorava usar vestidos longos com decotes ousados nas costas. Além disso, gostava de praticar esportes, com natação, tênis, alpinismo e golfe. Tinha mais amigos do que amigas. Seus parceiros de prática esportiva eram sempre homens, a maioria músicos de renome internacional.

No início de 1939, Magdalena foi para os Estados Unidos para uma temporada de concertos, sob o patrocínio do governo francês. Permaneceu lá durante um período de dois meses, quando recebeu um telegrama do Brasil propondo numerosos concertos, não só no Brasil como também na Argentina. O convite partiu do então ministro da Educação e Cultura do governo de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema. Sem poder transpor a fronteira para entrar na França, por causa da guerra, Magdalena veio para o Brasil num voo a partir de Nova York. Acabou permanecendo em nosso país por dez anos, de 1939 a 1949. Trabalhou nesse período catorze horas por dia, ministrando cursos públicos, estudando, tocando concertos, viajando por todo o país e atendendo alunos particulares. O êxito desses cursos a obrigaram a fundar uma escola particular no Rio de Janeiro, com uma sucursal em São Paulo. Preparou uma série de vinte aulas apresentadas na rádio do Ministério da Educação e Cultura, com execuções e comentários sobre as obras e os autores, intitulada “Dois Séculos de Música”.

Organizou também um sem-número de cursos de alta interpretação pianística por esse Brasil afora. O cenário musical brasileiro passou a ser avaliado sob um novo ponto de vista: “A música antes e depois de Magda Tagliaferro”. A grande mestra do piano levou ao conhecimento do público brasileiro um repertório de primeira linha da música francesa, até então ignorado pelos intérpretes brasileiros. Gabriel Fauré e Claude Debussy reinaram absolutos nos programas de seus concertos e empolgaram as plateias mais exigentes do nosso país.

No Brasil, Magda foi professora de Neusa França, Heitor Alimonda, Maria Josephina Mignone, Isabel Mourão, Eudóxia de Barros, Cristina Ortiz e Fábio Caramuru, entre outros.

Em setembro de 1980, tive o privilégio de conhecer pessoalmente essa grande artista, que esteve em Uberlândia para ministrar um “Curso de Alta Interpretação Pianística” para cerca de trezentos pianistas da região do Triângulo Mineiro. Foram selecionados dez pianistas, que apresentaram peças de livre escolha, as quais foram analisadas e trabalhadas pela grande mestra, diante dos alunos e professores que lotavam o auditório do Uberlândia Clube. Para minha surpresa e alegria, fui uma das intérpretes selecionadas para se apresentarem ao piano no dia 15 de setembro, primeiro dia do curso. Fui a última pianista a tocar nesse dia. Executei o “Improviso op. 90 nº 1”, de Schubert, num lindo piano de cauda Yamaha. Magdalena disse ao microfone: “Execução perfeita, limpa e amadurecida. Nada tenho a acrescentar. Só posso cumprimentá-la pelo bom gosto na escolha da peça”. Uma noite que ficou gravada na minha memória para sempre!

No recital de encerramento do curso, ela nos surpreendeu com seu talento, sua interpretação irrepreensível, sua memória prodigiosa e sua elegância no palco.

Magdalena morreu em 9 de setembro de 1986, aos 93 anos, no Rio de Janeiro, cercada pelo carinho de suas ex-alunas. Foi velada no Teatro Municipal do Rio, ao som do “Réquiem” de Gabriel Fauré e reverenciada por toda a classe artística.

Olga Maria Frange de Oliveira

Autora do livro “Pioneiros da História da Música em Uberaba”; ocupa a cadeira nº 15 da Academia de Letras do Triângulo Mineiro

 

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