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Meu adeus a Nélida Piñon

Olga Maria Frange de Oliveira
Publicado em 24/12/2022 às 14:01Atualizado em 26/12/2022 às 23:01
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Nélida Cuiñas Piñon nasceu no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, no dia 3 de maio de 1937. Seus pais, o comerciante Lino Piñon Muíños e Olívia Carmen Cuiñas Piñon, são originários do município de Cotobade, região da Galícia, na Espanha.

Seu exótico nome é um anagrama do nome do avô Daniel. Ainda criança, era estimulada para a leitura e já escrevia pequenas histórias. Com apenas nove anos, Nélida já frequentava o Teatro Municipal com sua família. Após completar dez anos, fez sua primeira viagem à terra de seus pais, onde permaneceu durante quase dois anos. Este foi um período importante para fortalecer seus laços afetivos com a sua metade galega.

Tinha 20 anos quando perdeu seu pai, que foi o responsável por sua formação como escritora. Ela própria declarou: “Meus pais me permitiram sonhar e fizeram com que eu desenvolvesse um potencial criativo extraordinário ao me levarem ao teatro para assistir a óperas e concertos, além de me presentearem com livros, almanaques e gibis”.

A escritora se formou em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Seu livro de estreia foi o romance “Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo”, lançado em 1961. Nele, a escritora fala de temas com pecado, perdão, e da relação dos mortais com Deus através do diálogo entre o protagonista e seu anjo da guarda. Dois anos depois, publicou seu segundo livro, “Madeira feito Cruz”. Em 1965, viajou para os Estados Unidos com a bolsa Leader Grant, concedida pelo governo norte-americano. Ao longo de sua vida, escreveu mais de vinte livros em diversos gêneros: romances, contos, ensaios, discursos, crônicas e memórias. Suas obras foram traduzidas em mais de trinta países. Aos 33 anos de idade, inaugurou a cadeira de Criação Literária da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em 1972, Nélida lançou “A Casa da Paixão”, considerado um dos seus melhores e mais conhecidos romances, vencedor do Prêmio Mário de Andrade. Já com seu nome consolidado nos meios literários do Brasil e do exterior, em 27 de julho de 1989 foi eleita para ocupar a cadeira n.º 30 da Academia Brasileira de Letras, por ocasião do centenário de fundação deste sodalício. Poucos anos depois, em 1996, tornou-se a primeira mulher a assumir a presidência da ABL, sendo que este pioneirismo a colocou também na qualidade de primeira mulher a presidir uma Academia de Letras em todo o mundo.

Nélida Piñon foi uma das maiores representantes da literatura brasileira. Fez jus a dezenas de prêmios nacionais e internacionais. No período de 1990 a 2003, foi titular da Cátedra Henry King Stanford em Humanidades, da Universidade de Miami.

Recebeu o título de Doutor Honoris Causa nas seguintes universidades: Universidade de Poitiers (França); Universidade de Santiago de Compostela (Espanha); Florida Atlantic University (EUA); Universidade de Montreal (Canadá); Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (RS).

Nélida assim se descreveu: “Sou mulher, brasileira, escritora, cosmopolita, aldeã, criatura de todas as partes e de todos os portos. Sou alguém que tem o hábito de criar e de pensar. É consequência da minha própria existência. Busco, em minha obra, cobrir o repertório humano. Tenho a pretensão de falar com a voz coletiva, pois o escritor tem as vozes do mundo, o que lhe permite encarnar uma voz mais fidedigna”.

Seu amplo apartamento na Zona Sul do Rio de Janeiro tinha vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal carioca. Em uma de suas entrevistas, ela disse: “Há história por trás de tudo. E histórias são o fundamento da humanidade. Cada objeto da decoração de minha casa tem um significado. Desde pequena conservo o hábito de guardar coisas. Hoje, tenho um acervo impressionante”.

Em 14 de janeiro do corrente ano, a festejada escritora recebeu, formalmente, a nacionalidade espanhola em um ato ocorrido no Consulado da Espanha, no Rio de Janeiro. Emocionada, Nélida assim se expressou: “Hoje eu sou a brasileira que sempre fui, e adicionei a essa minha maravilhosa nacionalidade brasileira a nacionalidade espanhola e passo a pertencer à União Europeia. Quando penso em Espanha, penso em seus grandes heróis mortos: El Cid e Miguel de Cervantes, por exemplo. Depois, penso nos meus mortos, no meu avô Daniel, na minha avó Mada, na minha mãe, Carmen, e no meu amado pai, Lino”.

Nélida Piñon morreu aos 85 anos, na cidade de Lisboa, em 17 de dezembro de 2022, onde residiu nos últimos anos. Foi uma decisão da escritora, que desejava aprofundar seus conhecimentos sobre a rica história das terras lusitanas e sua legítima vocação marítima, uma vez que viajar, lançar-se ao mar ... foi sempre o destino deste povo. O resultado dessa prolongada estada em Portugal foi o seu último romance, “Um dia chegarei a Sagres”, lançado em 2020. Trata-se de um épico poderoso passado em Portugal no século XIX. Uma ficção literária, baseada na tradição oral e na cultura da memória, transformada na saga de um humilde camponês e sua estranha obsessão de um dia chegar a Sagres.

Sua morte certamente foi uma grande perda para a literatura brasileira. Segundo o atual presidente da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira, Nélida era a maior escritora viva do nosso país. De acordo com o porta-voz da Academia, o sepultamento de Nélida Piñon será no mausoléu da entidade, em cerimônia especial, em data a ser divulgada, cercada pelas homenagens dos seus confrades e admiradores.

Comecei a ter contato com sua produção literária a partir do início do século XXI, com os seguintes títulos: “Vozes do Deserto” (2004); “A camisa do marido” (2014); “Uma furtiva lágrima” (2019) e “Um dia chegarei a Sagres” (2020). Apaixonei-me por suas criações sempre tão fortes e surpreendentes. A linguagem utilizada pela escritora possui uma espécie de “sintaxe pessoal” e é predominantemente metafórica, o que a torna muitas vezes inacessível para leitores comuns, pelo alto nível de abstração empregado. Com toda certeza, Nélida não é para amadores.

Termino minhas considerações com pensamentos extraídos de seu último livr “Não me perpetuei em ninguém. Termino em mim. A vida é íngreme como as ladeiras. Para onde a morte me leve, seguirei seus passos. Não creio ser ela mais potente ou penosa que a vida”.

Olga Maria Frange de Oliveira

Professora de piano; autora dos livros “Pioneiros da História da Música em Uberaba” e “Mulheres na Música”; ocupa a cadeira n.º 15 da Academia de Letras do Triângulo Mineiro

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